quarta-feira, 8 de maio de 2013


A FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE

Aixa Bárbara Marques Barbosa*
Ana Maria de Assis Lima*
Thaís Abrahão de Negreiros Lima*

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por escopo esclarecer conceitos de posse e falar sobre sua função social, além de demonstrar sua fundamentação, seu alcance, e como funciona na prática a apreciação desse assunto que se torna cada vez mais frequente objeto de pesquisa, uma vez que é um assunto de inexorável importância para a efetivação da democracia e dos Direitos Fundamentais. Também será mostrado, de forma simples, como a função social da posse é vista no Direito Comparado, especificamente na Angola.
Thomas Ford Hoult (1969), em seu Dicionário de Sociologia Moderna, define função social como sendo “a contribuição que um fenômeno provê a um sistema maior do que aquele ao qual o fenômeno faz parte”. Portanto, sob o aspecto da função social da posse, podemos analisar a contribuição que a posse traz à sociedade. Se levarmos para o lado de que a função social no Direito tem a finalidade primária de tornar os direito mais justos, como dizem alguns doutrinadores, pode-se constar que a função social da posse vem para tornar a posse mais justa, trazendo limitações e restrições para o seu exercício.
Ao pesquisarmos sobre função social no Direito das Coisas, observa-se grande importância dada à função social da propriedade, talvez porque esta esteja codificada expressamente em lei, como vemos claramente no artigo 1228, §1º do Código Civil de 2002, e nos artigos 5º, XXII e XXIII e 170, III ambos da Constituição Federal de 1988. Porém, a posse não possui a mesma codificação e acaba por ser interpretada indiretamente pelos princípios fundamentais, e também pela propriedade. Por isso, este trabalho visa abordar o tema da função social da posse, para que possamos perceber o quanto é importante este instituto, tanto quanto o da propriedade, e como já se verifica a sua aplicação nos dias de hoje, mesmo com a ausência de previsão legal.

DESENVOLVIMENTO

1. Posse e função social

No âmbito do Direito Civil, insere-se o Direito das Coisas, que vem a regular os poderes da pessoa sobre os bens, materiais e imateriais, com exceção dos direitos autorais, que são imateriais e tratados em lei específica. Nesse contexto, destaca-se o instituto da posse.
Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2013), o conceito de posse, no direito positivo brasileiro, é retirado de forma indireta do artigo 1196 do Código Civil de 2002, que define como possuidor aquele que possui de fato o exercício, pleno ou não, de alguns dos poderes da propriedade.
Entretanto, teorias existem que procuram explicar o conceito de posse. Em geral, essas se dividem em três grupos: as subjetivas, as objetivas e as sociológicas. Em suma, para as teorias subjetivas, possuidor é aquele que tem relação material com a coisa e, sobre ela, sentimento de dono; enquanto que, para as teorias objetivas, possuidor é aquele que tem relação de fato com a coisa, dando-lhe destinação, porém prescindindo do sentimento de dono.
No início do século passado, surgiram novas teorias que deram ênfase ao caráter econômico e à função social da posse, denominadas de sociológicas (GONÇALVES, 2013). Elas visualizam a posse como um fenômeno social que merece estudo não só no campo jurídico, mas também sob os aspectos sociológicos. (GABRIELA QUINHONES SOUZA, 2010). Em relação a essas teorias, temos o conceito de posse, na visão de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010):
Em outro giro, as teorias sociológicas da posse procuram demonstrar que a posse não é um apêndice da propriedade, ou a sua mera aparência e sombra. Muito pelo contrário, elas reinterpretam a posse de acordo com os valores sociais nela impregnados, como um poder fático de ingerência socioeconômica sobre determinado bem da vida, mediante a utilização concreta da coisa. A posse deve ser considerada como fenômeno de relevante densidade social, com autonomia em relação à propriedade e aos direitos reais. Devemos descobrir na própria posse as razões para o seu reconhecimento.
Para Júlio Silva Moreira (apud GABRIELA QUINHONES SOUZA, 2010), é essencial compreender a posse dentro do contexto das relações sociais, pois é preciso quebrar com a concepção ultrapassada da autonomia absoluta da vontade individual preconizada nas bases do Direito Privado. Numa sociedade repleta de enormes disparidades entre as condições materiais de sobrevivência dos indivíduos, é impossível falar em autonomia da vontade individual, pois da relação existente entre indivíduo e coisa há reflexos para os outros. Para o autor, a posse de um indivíduo só é legítima se não constituir obstáculo ao desenvolvimento econômico e social da coletividade.

É sob a égide dessa nova configuração da posse, como um instituto de caráter jurídico, econômico e social, aliada à nova concepção do direito de propriedade - que deve também exercer uma função social, como prescreve a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5°, inciso XXIII, complementando as regras sobre política urbana, em relação à usucapião urbana e rural (CF, arts. 183 e 191) -, que se observa a concepção e a exigência da função social da posse, não obstante o ordenamento civil brasileiro ter adotado as teorias objetivas, considerando possuidor aquele que tem relação de fato com a coisa, ou seja, o exercício, pleno ou não, de alguns dos poderes da propriedade.

2. Os fundamentos da função social da posse   
      
Como foi mencionado, a função social da posse não recebeu positivação expressa no Código Civil, nem na Constituição Federal. O mesmo não ocorreu com a função social da propriedade, que está expressa no art. 1228, parágrafo 1º, do Código Civil, como citado anteriormente. Entretanto, a ausência de regramento expresso em nada impede a fundamentação da posse, ou seja, entender o porquê de sua existência, e a filtragem constitucional sobre esse instituto. (FARIAS; ROSENVALD, 2010).
Segundo entendimento de Adriano Stanley Souza (2008), o fundamento de existência para o exercício de qualquer direito deve passar, necessariamente, pelo equilíbrio do bem estar social, sendo este o fundamento basilar do princípio da função social. Em relação ao instituto da posse, o seu exercício, ainda que desprovido do direito de propriedade, pode trazer inúmeros benefícios ao corpo social. Daí surge a função social da posse.
Para Gabriela Quinhones Souza (2010), por meio da função social da posse, são garantidos direitos fundamentais e outros direitos constitucionais, como o direito à moradia e ao trabalho, corolários do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal, o qual é o axioma máximo da Carta Magna. Como aduz Guilherme de Pena Moraes (2008; apud GABRIELA QUINHONES SOUZA, 2010), os direitos sociais, como o de moradia e do trabalho, são próprios do homem social, uma vez que dizem respeito a um complexo de relações sociais, econômicas e culturais que o indivíduo desenvolve para a realização de sua vida em todas as suas potencialidades. Dessa forma, tais direitos, por exemplo, fomentam o principal objetivo da Constituição Federal, que é a Dignidade da Pessoa Humana, pois esta representa uma proteção ao homem como ser humano, em que sua integridade física e psíquica, bem como suas ações e comportamentos, devem ser respeitados. Portanto, garantir ao ser humano a proteção a tais direitos, em razão da existência da função social da posse, é uma forma de fomento à dignidade da pessoa humana, importante para a sua vivência e integração na sociedade como cidadão que todos merecem ser.
Na visão de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010), a função social da posse é ainda uma abordagem diferenciada da função social da propriedade, uma vez que nesta “[...] não apenas se sanciona a conduta ilegítima de um proprietário que não é solidário perante a coletividade, mas se estimula o direito à moradia como direito fundamental de índole existencial, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana”, podendo-se inferir dela também a existência da função social da posse.
Portanto, percebe-se que a função social da posse tem como principal fundamento de existência o fato de ser uma forma de efetivação da dignidade da pessoa humana, positivada na Carta Magna, e um meio de garantia de direitos constitucionais, buscando o equilíbrio do bem estar social.

3. O conteúdo e o alcance da função social da posse

O instituto da posse, como percebido, é encarado como um fato social, e, segundo Ana Rita Vieira de Albuquerque (2002, apud FARIAS; ROSENVALD, 2010), é comprometido com os fundamentos e objetivos do Estado Democrático de Direito e a efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana.
Com a constitucionalização do Direito Civil, o qual passou a ser fortemente interpretado em consonância com os ditames da Constituição Federal, seguindo, principalmente, os fundamentos estampados em seu artigo 1°, tem-se destaque para o referido princípio da dignidade da pessoa humana. Na visão de Adriano Stanley Rocha Souza (2008), esse princípio implica em ter como centro de proteção do Estado o indivíduo, considerado como parte de um corpo social, a coletividade, devendo-se proteger o indivíduo para, por meio dele, proteger a coletividade. A função social da posse reflete essa preocupação com o indivíduo, mas também com a sociedade, para isso ela infere que seja dada destinação socioeconômica a um bem, satisfazendo ele necessidades individuais e coletivas.
Como foi dito anteriormente, entende-se que a função social da posse é uma abordagem diferenciada da função social da propriedade, portanto ambas possuem ideias semelhantes. Em relação à propriedade, e sendo a sua função social um fundamento para a função social da posse, ela deve ser protegida, mas não de maneira absoluta e cega, e sim se levando em consideração a função social que exerce frente à sua comunidade. Para o referido autor:
 A lei não protege aquela propriedade que não exerce a sua função social, ao passo que, para proteger esta mesma função social, a lei confere a mais ampla proteção ao possuidor que se utiliza da coisa de maneira adequada, contribuindo, assim, para a mantença do bem estar social. Em outras palavras, a função social da propriedade pode se constituir no fundamento jurídico para se perder a propriedade improdutiva. Por outro lado, esse mesmo princípio também pode se constituir no fundamento jurídico para se manter a posse do bem nas mãos daquele que não seja proprietário, se for este quem dá produtividade à coisa.

Infere-se, portanto, que a função social da posse impõe que a posse seja realizada de maneira adequada, sendo os poderes da propriedade relativos à essa posse efetivados de forma a atender uma destinação socioeconômica, dando-se produtividade à coisa e contribuindo para a sociedade. O possuidor deve dar uma destinação útil àquilo que possui, assumindo responsabilidades perante a coletividade. A função social da posse pode assim ser vista como uma limitação ao direito de posse, assim como ocorre na propriedade, mas em prol da utilidade e dos benefícios que a posse deve proporcionar à sociedade.
A função social da posse visa, portanto, tornar a posse um instrumento de edificação da cidadania e das necessidades básicas do ser humano, sendo possível, assim como um proprietário perder a propriedade da coisa improdutiva, um possuidor que a má utiliza perder a sua posse, ou um possuidor que lhe dar destinação socioeconômica ganhar a propriedade do proprietário “ruim”.

4. Um entendimento jurisprudencial sobre a função social da posse

Com o fim de se visualizar um pouco, na realidade prática, a relevância e a aplicação da função social da posse, tomou-se como exemplo o seguinte julgado a respeito da função social da posse (Apelação Cível n° 70008877755, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator Vasco Della Giustina, Julgado em 18/08/2004):
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E 
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DEMOLITÓRIA. CASA, EM FAVELA, CONSTRUÍDA JUNTO À VIA FÉRREA. IRREGULARIDADE. INEXISTÊNCIA DE PROJETO E ALVARÁ DE EDIFICAÇÃO. APELAÇÃO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Necessidade de se analisar não apenas o aspecto técnico-jurídico da questão, como, também, seu aspecto sócio-econômico. 2. Para ser possível a demolição, tem o Município que assegurar à apelada outra habitação que garanta sua dignidade como pessoa humana. APELAÇÃO PROVIDA, VOTO VENCIDO. [...]
Pode-se observar que tal decisão deixa clara a preocupação judicial frente às relações possessórias, não mais apenas sob o ponto de vista jurídico, mas também sob o aspecto social, uma vez que a função social da posse enaltece o instituto da dignidade da pessoa humana, viabiliza o Estado Democrático de Direito e atenua as necessidades essenciais da sociedade atual. A função social da posse é estabelecida pela necessidade social, pela necessidade de um local para morar ou para trabalhar, para as necessidades mínimas que pressupõem o ser humano como digno.

5. Função social da posse no Direito comparado

Este assunto não fica restrito somente ao Brasil, o Direito angolano também trata da função social da posse. Porém, do mesmo modo que o ordenamento brasileiro, o ordenamento angolano não possui expressa previsão legal que trate do referido assunto.
Fazendo uma análise dos direitos protegidos pelo país supracitado encontra-se a proteção à dignidade humana prevista no artigo 20º da Constituição de Angola; o item I do artigo 24º diz que: “todos os cidadãos tem direito de viver em um meio ambiente sadio e não poluído”; o artigo 44º protege a inviolabilidade do domicílio; e o artigo 50º diz que compete ao Estado garantir que os cidadãos possam gozar efetivamente dos seus direitos e cumprir integralmente seus deveres. Juntando as ideias dos três artigos, tem-se a ideia de que ai está implícito o direito à moradia, uma vez que se tem direito a viver em um ambiente sadio, com proteção a inviolabilidade deste domicilio e garantidos a efetivação dos seus direitos e deveres.
Sendo a moradia implicitamente protegida, entende-se ser protegida também a posse, já que, nos dizeres de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010):
A posse é uma extensão dos bens da personalidade. A moradia é um dos bens que integram a situação existencial de qualquer pessoa. O papel da função social em relação à moradia é o de conceder a um espaço de vida e liberdade a todo ser humano independente da questão da propriedade, pois esta se prende à patrimonialidade e à titularidade.
Portanto, pode-se concluir que a Angola, assim como o Brasil, trata da função social da posse com base nos princípios e direitos fundamentais, com base principalmente no direito à moradia e no direito à dignidade humana.

CONCLUSÃO
Diante do exposto pode-se perceber, em primeiro lugar, a necessidade de estarmos sempre atentos ao instituto da posse e à sua função social.
A grande interrelação dos direitos fundamentais com o funcionalismo social da posse a torna ainda mais imprescindível para a busca de um Direito justo, democrático e atual, já que esses direitos são constantemente invocados, não só no nosso País.
Compreende-se, então, que sempre se deve analisar a posse de maneira ampla, observar as contribuições e/ou prejuízos que podem ser causados a coletividade, sem se concentrar apenas nas relações diretas e individuais deste instituto tão presente no cotidiano jurídico para, assim, ser assegurado da melhor maneira possível o equilíbrio social, econômico e jurídico das relações atuais.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Código Civil (1965). Vade Mecum. São Paulo: Saraiva, 2013.
BRASIL. Constituição Federal (1988). Vade Mecum. São Paulo: Saraiva, 2013.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos das Coisas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: Direito das coisas. v.5. São Paulo: Saraiva, 2013.
HOULT, Thomas Ford. Dicionário de Sociologia Moderna. 1969.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n° 70008877755, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator Vasco Della Giustina, Julgado em 18/08/2004. Disponível em: <www.tj.rs.gov.br>. Acesso em: 10/03/13.
SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Direito comparado Brasil-Angola. Função social da propriedade e da posse. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1446, 17 jun. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/10024>. Acesso em: 15/03/13.
SOUZA, Adriano Stanley. Da função social da posse. Revista jurídica on line, Itabira, v.5, n.1. 2008. Disponível em: <http://www.funcesi.br/Default.aspx?tabid=962>. Acesso em: 08/03/13.

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