quinta-feira, 4 de outubro de 2012

A função social da propriedade em contraposição ao seu caráter absoluto



                             Por: Ana Cristina Lima Martins¹, Dharana Vieira da Cunha², Débora Ferreira Soares Vidal³,    Yvna Vynbynsky Paiva Maciel4, Francisca Patrícia Gouveia Bezerra5, Beatriz Cabral de Brito6


A ideia de propriedade imóvel adquiriu aspectos distintos ao longo da história da humanidade. Durante as transformações pelas quais passou, teve sempre papel de destaque nos sistemas econômicos e foi influenciada pelos aspectos políticos predominantes de cada época.
É usual atualmente em trabalhos científicos que se encontre o conceito de propriedade extraído de uma análise do texto do artigo. 1.228, caput, do Código Civil atual inferindo-se que esta seria “o poder de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de que quer que injustamente a possua ou a detenha”. Tal conceito oferece uma concepção bastante ampla da extensão dos poderes do proprietário.
Sabe-se que a propriedade tem como características a exclusividade, a perpetuidade e a elasticidade. Este trabalho objetiva, porém, a abordagem específica de uma das características da propriedade, qual seja: o seu caráter absoluto relativizado.
Buscou-se, através de uma análise da história e dos aspectos econômicos-sociais que cercaram a propriedade ao longo tempo, tecer considerações acerca da função social que esta adquiriu, de seu papel no ordenamento jurídico nacional e da sua importância na relativização do caráter absoluto da propriedade.

Desenvolvimento
Durante a fase primitiva da evolução humana não havia uma bem delimitada ideia de propriedade privada e individual no que se relaciona aos bens imóveis. Os grupos humanos utilizavam-se do solo de forma comunitária e extraiam da natureza os materiais necessários à sua sobrevivência. Esgotando-se os recursos de um determinado local, migravam para um outro que melhor os acolhesse, não havendo conexão duradoura entre o indivíduo e o local de sua habitação. Posteriormente, com o desenvolvimento de técnicas de plantio e criação de animais, o homem vislumbrou a possibilidade de fixar-se à terra, não mais sendo subjugado por todas as limitações que o ambiente lhe impunha. A partir desse momento, as células sociais – famílias, clãs – passaram a habitar duradouramente um mesmo espaço físico e a ideia de continuidade no bem cresceu no íntimo da nascente sociedade.
Na Roma antiga, a propriedade se encontrava intimamente relacionada à religião e à família. Existia sobre o local de habitação familiar o caráter sagrado de um templo. A cultura romana de adoração aos antepassados como deuses particulares de cada família – chamados de Deuses Lares – ligava os indivíduos indelevelmente à propriedade. O lar pertencia à família – dirigida pelo Pater – assim como os seus deuses que neste local deveriam ser cultuados por todas as subsequentes gerações. Neste sentido são os ensinamentos de Fustel de Coulanges (2006) em sua obra “A Cidade Antiga”:

Há três coisas que, desde as mais antigas eras, encontram-se fundadas e solidamente estabelecidas nas sociedades grega e itálica: a religião doméstica, a família, o direito de propriedade; três coisas que tiveram entre si, na origem, uma relação evidente, e que parecem terem sido inseparáveis. A ideia de propriedade privada fazia parte da própria religião. Cada família tinha seu lar e seus antepassados. Esses deuses não podiam ser adorados senão por ela, e não protegiam senão a ela; eram sua propriedade exclusiva.” (FUSTEL DE COULANGES, 2006)

Desta forma, podemos observar na sociedade romana a forte feição absoluta, perpétua e individualista da propriedade que conferia ao seu titular poderes plenos com oponibilidade erga omnes.
Após a derrocada do Império Romano provocada pelas invasões bárbaras, a história da humanidade adentra a Idade Média que traz com ela o sistema econômico feudal. O feudalismo é fortemente marcado pela concepção da terra como a principal riqueza. Nesse período, a propriedade de terras trazia consigo o poder político e a condição de nobreza, uma vez que a utilização da terra, o domínio sobre ela e a produção que dela advinha eram a própria base e o sustentáculo da economia e da sociedade feudais. O regime de servidão - no qual os sujeitos não proprietários de terras a ela aderiam como acessórios, ficando “presos a terra” e devendo oferecer sua força de trabalho em troca de abrigo e oportunidade de sobrevivência - foi a mais forte representação da importância e valorização da propriedade imóvel durante o feudalismo. O senhor de terras não só exercia poder soberano sobre suas terras como também sobre os indivíduos que dela dependiam para sua subsistência.
A partir da Baixa Idade Média e da Idade Moderna, o advento da consolidação dos Estados Absolutistas impulsionou o renascimento do capitalismo, do comércio, dos sistemas monetários e da ideia de lucro; mudanças drásticas na sociedade e na economia movidas por uma nova classe ascendente – a burguesia. Porém, foi somente com a Revolução industrial que o capitalismo se tornou mais agressivo e se fortaleceu e foi com a Revolução Francesa que a burguesia se consolidou no poder subvertendo a ordem política vigente e impondo o fim das Monarquias Absolutistas.
Foi no contexto das Revoluções Liberais, do Iluminismo e do Liberalismo que surgiram os chamados Direitos Fundamentais de Primeira Geração que buscavam estabelecer o papel do Estado Liberal como um Estado absenteísta, garantidor e não-interventor buscando proteger e assegurar as liberdades e os direitos individuais, dentre eles o direito de propriedade.
O Estado Liberal do século XIX era caracterizado pela exacerbação do indivíduo, de seus potenciais, liberdades e direitos. Entendia-se que ao ser individual deveria ser assegurado o poder de atuar de forma absoluta e livre exercendo a autonomia da sua vontade, dentre outros aspectos, também sobre aquilo de que fosse proprietário. Desta forma, o Estado não deveria intervir, limitar ou restringir os direitos do proprietário sobre aquilo que lhe pertencia.
Essa concepção individualista foi, gradualmente, perdendo força devido às transformações sociais expressivas que se sucederam ao longo do século XIX e XX. O agravamento das desigualdades sociais, a situação degradante em que a classe trabalhadora se encontrava, os efeitos negativos do capitalismo agressivo e inconsequente, a concentração acentuada de riquezas e a situação de desamparo em que maior parte da população se encontrava trouxeram à tona a necessidade de um Estado de feição mais humanizada, um Estado presente e encarregado de proporcionar ao seu povo o mínimo de dignidade e bem estar. Emergiam, então, os Direitos Fundamentais de Segunda Geração – econômicos, sociais e culturais – com um Estado Social que tinha como função implementar a igualdade material e não somente formal.
Os Direitos Fundamentais de Segunda Geração estavam presentes no Estado Social e atuaram sobre as constituições da época trazendo para o contexto jurídico fortes ideias ligadas à função social dos direitos, dentre eles o de propriedade. Dentre as constituições que incorporaram a função social da propriedade podemos citar a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919 tendo esta influenciado grandemente a Constituição Brasileira de 1934 que inovou em âmbito nacional prevendo em seu art. 113, 17 que o direito de propriedade “não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar”. A partir de então, a sobreposição do direito coletivo ao interesse individual vem sendo reafirmada no ordenamento jurídico nacional chegando à perspectiva atual de função social da propriedade estabelecida pelo texto da Constituição Federal de 1988.
Para que seja possível uma abordagem do alcance atual do princípio da função social da propriedade em nosso ordenamento jurídico se faz necessária, primeiramente, uma breve explanação acerca do fenômeno jurídico da constitucionalização do Direito Civil.
O Direito Civil, durante o período Liberal da evolução da sociedade figurava como o direito do indivíduo, da realização particular do sujeito chegando o Código Civil a ser visto como “a constituição do homem comum” em direta oposição à Constituição política.
Tendo tomando como parâmetro o homem burguês e proprietário, o processo de codificação civil teve o efeito de unir e sistematizar um complexo de normas destinadas exclusivamente às relações pessoais privadas onde se dava total prevalência à autonomia da vontade e à liberdade plena de cada um para exercer seus direitos sem restrição por parte do Estado.
A Constituição política, por outro lado, tinha como função precípua a delimitação de um Estado Mínimo, buscando restringir a atuação deste e a possibilidade de interferência do poder público na esfera das relações patrimoniais privadas.
Como já dito, os reflexos desse exacerbado individualismo jurídico e da patrimonialização do Direito Civil, foram as por profundas injustiças sociais encobertas pelo manto de uma igualdade formal e de uma liberdade que raramente alcançava a parcela da população composta pelo homem comum.
Porém, como visto anteriormente, a evolução dos direitos fundamentais operou uma transformação significativa nos ordenamentos jurídicos em geral. Ideias como a de dignidade da pessoa humana, bem comum, igualdade material e efetivação de direitos alcançaram as Constituições e elevaram-se à categoria de princípios. Nascia, então, o Estado Social que, nas palavras de Paulo Luiz Netto Lôbo é, no plano do direito, “todo aquele que tem incluída na Constituição a regulação da ordem econômica e social.” Referindo-se ainda ao Estado Social e ao modelo constitucional deste, ensina o aludido autor:
Além da limitação ao poder político, limita-se o poder econômico e projeta-se para além dos indivíduos a tutela dos direitos, incluindo o trabalho, a educação, a cultura, a saúde, a seguridade social, o meio ambiente, todos com inegáveis reflexos nas dimensões materiais do direito civil” (Paulo Luiz Netto Lôbo, 1999)
A Constituição passa, então, a ter a função de limitadora do poder econômico buscando coibir excessos na autonomia da vontade privada e fazendo com que haja a prevalência do interesse coletivo sobre o individual. Por fim, a Carta Política passa a ter, como principal objetivo, a promoção da dignidade da pessoa humana.
Nesse contexto, a Constituição se torna o fundamento de validade para todo o ordenamento jurídico, irradiando seus princípios para a legislação infraconstitucional que deve passar a ser então interpretada segundo a Lei Maior, não sendo aceitável que esteja em desconformidade com ela. Os princípios e normas constitucionais passam a ter aplicabilidade imediata, impondo-se inclusive no seio das relações particulares de acordo com a eficácia horizontal dos seus direitos fundamentais.
Desta forma, a Constituição e o Código Civil, que antes pertenciam a realidades distintas e até opostas passam a ser interpretados em unicidade, considerando-se a lei civil segundo os preceitos constitucionais. Nos dizeres de Paulo Lôbo:
A mudança de atitude é substancial: deve o jurista interpretar o Código Civil segundo a Constituição e não a Constituição segundo o Código, como ocorria com frequência.” (Paulo Luiz Netto Lôbo, 1999).
O cenário jurídico nacional, com a Constituição Federal de 1988, apresenta-se profundamente vinculado à ideia de função social dos direitos defendida por Léon Duguit no início do século XX. Conforme Carlos Roberto Gonçalves (2012), Duguit é considerado precursor da ideia de que os direitos só se justificam pela missão social para a qual devem contribuir.
Em seu artigo 5º, inciso XXII a atual constituição garante o direito de propriedade afirmando, logo no inciso subsequente, que esta deverá atender a sua função social. O texto constitucional vincula também à função social da propriedade (art. 170, III) toda a ordem econômica de forma a deixar evidente a preocupação de se tutelar o interesse da coletividade acima do interesse individual. Neste sentido, citamos mais uma vez Paulo Lôbo quando diz que:
A função social é incompatível com a noção de direito absoluto, oponível a todos, em que se admite apenas a limitação externa, negativa. A função social importa limitação interna, positiva, condicionando o exercício e o próprio direito. Lícito é o interesse individual quando realiza igualmente, o interesse social. O exercício do direito individual da propriedade deve ser feito no sentido da utilidade não somente para si, mas para todos. Daí ser incompatível com a inércia, com a inutilidade, com a especulação” (LÔBO, 1999)
Com a finalidade de possibilitar a efetivação da função social da propriedade, a Constituição dispõe de importantes mecanismos como o parcelamento compulsório (art. 182, § 4º, I), a cobrança de impostos progressivos no decorrer do tempo (art. 182, § 4º, II) e, por fim a desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública (art. 182, § 4º, III) todos destinados ao bem imóvel urbano que não esteja sendo utilizado ou esteja sendo subutilizado, ou seja, ao qual não se esteja proporcionando a função social a que se destina (art. 182, §4º).
O texto constitucional estabelece, ainda, a possibilidade de desapropriação por interesse social de imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social (art. 184, caput) estabelecendo, inequivocamente a utilidade dada à propriedade imóvel como fator indispensável capaz de se sobrepor inclusive ao direito de propriedade que vai perdendo, desta forma, seu caráter absoluto.
Afinando-se à Constituição de 1988, o atual código civil dispõe, em seu artigo 1.228, §1º que “O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”
É válida a referência a Caio Mário da Silva Pereira sobre a função da propriedade quando diz que:
Os bens são dados aos homens não para que dele se extraiam o máximo de beneficio e bem-estar com sacrifício dos demais, porém, para que os utilizem na medida em que possam preencher a sua "função social". Nessa ordem de idéias, defende o direito positivo que "o exercício do direito de propriedade há de ter por limite o cumprimento de certos deveres e o desempenho de tal função”. (Caio Mário da Silva Pereira, 2010).
Além do Código Civil e da Constituição Federal, diversas outras leis impõem limitações ao direito de propriedade tais como a Lei de Proteção ao Meio Ambiente, o Código Florestal, o Estatuto da Terra, o Estatuto da Cidade, o Plano Diretor (obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes), o Código de Mineração, etc.
Conclusão
Toda a evolução pela qual passou a humanidade ao longo da história teve o condão de modificar, na conformação dos ordenamentos jurídicos o entendimento a respeito da propriedade e qual deveria ser o seu papel na sociedade. Entende-se atualmente que a propriedade não mais conserva o caráter absoluto que ostentou outrora devido às inúmeras limitações decorrentes do direito de vizinhança, da necessidade de proteção ambiental e, sobretudo do princípio da função social da propriedade.
O direito de propriedade não mais figura somente como direito subjetivo pertence ao indivíduo e que se destina a satisfação única deste. Deve ser também entendida como o direito da coletividade à sua destinação econômica e produtiva. A função social da propriedade é exemplo da nova concepção constitucional fundamentada no princípio da dignidade da pessoa humana e na mudança de perspectiva do direito civil, que abrandou seu caráter individualista e patrimonialista. Deste forma, conclui-se que a extensão dos poderes do proprietário sobre aquilo que lhe pertence encontra-se hoje ligada à capacidade que tenha de realizar o bem social e contribuir para uma sociedade mais igualitária.


Referências

MORAIS, Alexandre de. Direitos humanos e fundamentais, teoria geral. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2005.

PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil, v. 4, direitos reais. 23ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 71.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, v. 5, direito das coisas. 7ª ed. São Paulo: Saraiva,
2012.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, v. 5, direitos reais. 5º ed. São Paulo: Atlas, 2005.

BRAGA, Roberta Chaves. Direito de propriedade e a Constituição Federal de 1988. Fortaleza: 2009

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito civil. Revista de Informação Legislativa - Secretaria de Edições Técnicas do Senado Federal, v. 36, n. 141, Brasília, 1999, p. 99-109.

AGUIAR, Reinaldo Pereira. O Direito de Propriedade. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,o-direito-de-propriedade,37138.html>, Acesso em: 08 de setembro de 2012.

LEITE, Ana Luisa Ribeiro. Desapropriação em face da função social da propriedade. Disponível em: <http://www.webartigos.com/artigos/desapropriacao-em-face-da-funcao-social-da-propriedade/89689/#ixzz26YlohArA>, Acesso em: 17 de setembro de 2012.


* As autoras são acadêmicas do curso de Direito da Universidade de Fortaleza - UNIFOR

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