quarta-feira, 24 de abril de 2013

BREVE ESTUDO ACERCA DA EVOLUÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE SOB PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL


Cibele Alexandre Uchoa*

 
RESUMO
O presente estudo tem como intuito expor, ainda que de forma perfunctória, a evolução da noção de propriedade em nosso ordenamento jurídico, buscando, inicialmente, dar extensão geral como forma de sustentáculo às mudanças nos textos constitucionais brasileiros. Dessa forma, apresentam-se as principais mudanças ocorridas em cada período histórico até que se chegue às conceituações do texto constitucional hodiernamente vigente. Busca-se aqui analisar a propriedade, amplamente estudada com enfoque civilista, sob a perspectiva histórico-constitucional, abordando, por derradeiro, o caráter funcional.
PALAVRAS-CHAVE: PROPRIEDADE; GARANTIA CONSTITUCIONAL; DIREITO FUNDAMENTAL; INTERESSE COLETIVO; FUNÇÃO SOCIAL.
 
INTRÓITO
            A concepção que foi dada à propriedade privada evoluiu com o passar do tempo, transmutando-se de uma feição absoluta do interesse privado sobre a coisa para uma prevalência do interesse coletivo, entendido como o interesse de fazer com que a propriedade cumpra sua função social. Essa evolução e transformação ocorridas no conceito de propriedade privada impactaram sobre o modo com que o Estado se relaciona com esse direito, assim como sobre a relação do proprietário com a coisa.
            As principais transformações ocorridas no direito de propriedade advêm, mormente, do trânsito do Estado Liberal ao Estado Social, caracterizado esse tempo histórico decorrido pela transição entre o caráter absoluto e individualista da propriedade, que se postergou até meados do século XVIII e marcou o período do absolutismo europeu; e entre o caráter mais coletivo e abrangente da propriedade, ou seja, a propensão da propriedade quando não dotada de uma função social, não mais estando, portanto, sob o direito irrestrito e ilimitado de seu proprietário, sendo esta concepção uníssona às concepções igualitárias.
 
DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO SOCIAL: PRINCIPAIS MUDANÇAS OCORRIDAS NO CARÁTER ABSOLUTO DA PROPRIEDADE
 
            O ideal de liberdade se perfilou de forma majorada após a Revolução Francesa, os direitos fundamentais ganharam espaço à mesma medida que os privilégios da nobreza eram diminuídos do contexto político social. Não obstante, mesmo no Estado Liberal o caráter absoluto da propriedade foi conservado, afinal era o que traduzia o ideal de liberdade, fundado nas conhecidas bases individualistas.
 
            Apesar de a Revolução Francesa firmar a famosa “liberte, égalité, fraternité”, o que muito se confirmava era o ideal de liberdade, instituído para garantir ainda mais o individualismo e a conservação da propriedade. Voltaram-se, contudo, as atenções a interesses da coletividade, interesses igualitários, voltados também à realização da justiça. Dessa maneira os ideais de liberdade se tornaram insuficientes.
 
            A passagem do Estado Liberal ao Estado Social se deu com as garantias fundamentais de segunda geração (BONAVIDES, 2012, p. 565-566). É nesse contexto que a natureza absoluta da propriedade enfraquece, ocasionando sua relativização.
 
            No Estado Social “os direitos individuais não devem mais ser entendidos como pertencentes ao indivíduo em seu exclusivo interesse, mas como instrumento para a construção de algo coletivo” (BERCOVIVI, 2005, p. 142-143). O conceito de propriedade evoluiu ao status de direito fundamental, com o interesse coletivo tutelado pela função social, o que deu azo a inúmeras contraversões doutrinárias, dentre estas, a consideração, por alguns autores, da função social como fator limitante à propriedade.
 
            As Constituições brasileiras de 1824 e de 1891 apresentavam o direito de propriedade ainda com o caráter absoluto, não assegurando o direito de propriedade pleno somente nos casos de desapropriação.
 
            A mudança introduzida pela Constituição de 1934, a garantia do poder de propriedade não ser exercido contra o interesse social ou coletivo, foi fruto de três acontecimentos históricos ocorridos na segunda metade do século XX, iniciando-se com o agrupamento dos direitos sociais do homem em consonância com a participação social, pela Constituição mexicana (FIGUEIREDO, 2010, p.86-87). Em sequência, a Revolução Russa de 1917 deu destaque às ideias de Marx, Engels e Lenin, com os direitos econômicos e sociais. O último acontecimento foi a introdução do princípio da função social da propriedade no texto da Constituição alemã de Weimer de 1919.  A Constituição de 1946 foi o primeiro texto constitucional brasileiro a adotar o aspecto funcional da propriedade, seu art. 147 dispunha da seguinte maneira: “O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade com igual oportunidade para todos.” Na Constituição de 1967, o art. 167 dispõe da mesma maneira, estabelecendo que “a ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] III- função social da propriedade.”
 
            Na Constituição de 1988 à propriedade é atribuída a condição de garantia e direito fundamental. O direito de propriedade se tornou inviolável, unindo a concepção da garantia à propriedade ao atendimento de sua função social, dessa maneira está inserida no título dedicado aos direitos e garantias fundamentais, elencado no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos, traduzindo significativamente a dimensão constitucional garantística da propriedade.
 
            Da seguinte maneira disciplina a Constituição de 1988 acerca da propriedade, harmonizando os fundamentos e os objetivos do Estado Democrático de Direito:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
 
            Em sentido explicativo, o ministro Celso de Mello (ADI 2.213-MC, em 04/04/2002, Plenário, DJ de 23-4-04) expôs de forma bastante didática:
O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na própria Constituição da República. O acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente constituem elementos de realização da função social da propriedade.  
   
CONSIDERAÇÕES FINAIS
 
            Podemos chegar à ilação, depois de finalizado o breve estudo, de que a ideia liberalista enquadrava a propriedade de forma voltada a atender somente as necessidades patrimoniais, excluindo qualquer característica que pudesse vir a auxiliar nas demais necessidades humanas, podendo estas ser exemplificadas pela geração de trabalhos ou produção de alimentos.
 
            Com o advento do Estado Social e a dotação da propriedade de uma função, devendo esta ser observada, o ideal de igualdade pode, em teoria, ser atingido de forma mais completa, sendo de fundamental importância o atendimento dessa função social para a realização dessa igualdade entre os homens, uma vez que garantidora da boa utilização e destinação da propriedade.
 
            Destarte, constatou-se que não há limitação da propriedade ao se exigir o cumprimento se sua função social, mas uma funcionalização para seu melhor aproveitamento, como bem explicitado nas passagens anteriores.
 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br> Acesso em: 13 de mar. 2013.
________. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br> Acesso em: 13 de mar. 2013.
________. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de setembro de 1946). Disponível em: < http://www.planalto.gov.br> Acesso em: 13 de mar. 2013.
________. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.213-MC. Brasília, DF, 23 de abril de 2004. Disponível em: < http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 10 de mar. 2013.
FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. A propriedade no direito ambiental. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.


* Graduanda em Direito pela Universidade de Fortaleza; e-mail: c.alexandreuchoa@gmail.com