sábado, 27 de outubro de 2012

A Ação de Imissão na Posse no ordenamento jurídico brasileiro

 

Por: Larissa Freitas Ribeiro, Mellissa Freitas Ribeiro, Giovani Magalhães*.


RESUMO

A partir da presente pesquisa, busca-se analisar o posicionamento da doutrina e jurisprudência brasileira acerca do instituto da ação de imissão na posse. Objetiva-se identificar a viabilidade da utilização dessa ação na defesa da posse, sob a égide do Código de Processo Civil de 1973. Apresentou-se um histórico dessa ação no ordenamento jurídico brasileiro, verificando e constatando a divergência jurisprudencial e doutrinária que a envolve desde 1891. O enfoque metodológico da pesquisa é de natureza qualitativa, quanto aos fins, exploratória, e no que se refere ao tipo, bibliográfica. Assim, torna-se possível verificar o conflito existente entre sua natureza, se ela é uma ação possessória ou petitória, evidenciando quais as consequências serão acarretadas a depender do modo que a ação de imissão na posse for enfrentada.

Palavras-chave: Ação de imissão na posse. Possessória. Legitimidade das partes

1.    INTRODUÇÃO

A ação de imissão na posse sempre teve sua compreensão envolvida em inúmeros conflitos. Devido a tantas divergências que se apresentam, envolvendo esse instituto, muitas vezes ele deixa de ser utilizado, passando a ser elencado apenas como um dos pedidos presentes na petição inicial.

Os querelantes, mesmo sabendo que a fase executiva dessa ação é mais célere e eficaz, utilizam-se da ação reivindicatória, pois temem qual será o posicionamento do magistrado que irá enfrentar a causa, visto que, a depender do intérprete a legitimidade das partes e o interesse jurídico pode variar bastante.

Nesse diapasão, aborda-se essa demanda relacionando as inúmeras interpretações que poderão ser atribuídas no estudo da ação de imissão na posse.

2.    NATUREZA DIVERGENTE DA AÇÃO DE IMISSÃO NA POSSE

Em todas as ações possessórias para que o autor possa propô-las é necessário que ele manifeste, ou tenha manifestado vínculo possessório com o bem, diferentemente, na ação de imissão na posse não há o pressuposto do exercício da posse. Aqui o autor nunca foi possuidor, mesmo tendo o direito de ser, ele ainda não conseguiu exercitar posse. Através dessa ação busca-se uma autorização judicial para que o interessado tenha condições de entrar no exercício da posse.

Devido a essa peculiaridade a ação de imissão na posse é uma ação de natureza divergente, pois alguns doutrinadores a classificam como uma ação possessória e outros como ação petitória. De acordo com Tito Fulgêncio (2000, p. 305), os estudiosos que acreditam ser pressuposto para todos os interditos uma posse já adquirida, e, portanto, ação possessória não pode ser a que tende a aquisição da posse está atrelada a um resquício da doutrina de Savigny. No mesmo sentido posiciona-se Maria Helena Diniz (2010, p.94), quando postula que a titularidade do direito à posse, que foi violado, é o pressuposto para as ações possessórias. Diferentemente, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010, p.153) acreditam ser a ação de imissão na posse uma ação tipicamente petitória. Para Tito Fulgêncio (2000, p. 305) o traço distintivo dos interditos possessórios são as reivindicações possessórias.

Prepondera nos tribunais brasileiros o entendimento de ser a ação de imissão na posse uma ação petitória. É o que se observa no voto proferido pelo Ministro Sidnei Beneti relator do Resp 1211073/RS “a ação de imissão na posse pode ser conceituada como um meio processual posto à disposição do proprietário para obter a posse do bem (natureza petitória)”. Seguindo o mesmo viés a Ministra Nancy Andrighi, ao ser relatora do Resp. 404717/MT, leciona que “deve-se observar que a ação de imissão de posse possui natureza petitória e não possessória, pois é manejada por aquele que detém a propriedade e busca a posse”. Análogo entendimento vem sendo adotado pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, como se visualiza no voto da Apelação Cível n.4489505.2003.8.06.000/0, a qual teve como relator o Desembargador Rômulo Moreira de Deus, “a ação de imissão de posse, que tem índole petitória e não possessória, é a ação própria para se conceder a posse a quem nunca teve, mas pretende obtê-la com fundamento no domínio”.

Observam-se as contradições e peculiaridades que se apresentam em face do estudo dessa ação. A relevância de se desenvolver um pensamento equânime acerca da natureza dessa ação justifica-se, pois, conforme o entendimento dado a natureza da ação modifica-se o seu trâmite processual, visto que, se entendida como uma ação possessória será conferida ao autor o direito de uma liminar, diferentemente, se for encarada como uma ação petitória não gozará o autor desse pressuposto, no entanto, em ambas as situações são relevantes ressaltar que a tutela antecipada pode ser concedida.

3. ANTECEDENTES HISTÓRICOS NA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRA

Sob a égide da Constituição de 1891, quando as leis processuais ainda eram elaboradas pelos Estados Membros e pela União, alguns códigos de processo estaduais elencavam a ação de imissão na posse em seu rol, outros não. Nesse diapasão, iniciou-se uma acirrada discussão doutrinária, pois se questionava a atuação do poder legislativo estadual, o qual era legitimado a legislar apenas acerca de matéria processual, estaria extrapolando essa permissibilidade e estava adentrando na esfera do direito subjetivo, visto que, o Código Civil apenas abordava a ação de manutenção de posse, reintegração de posse e interdito proibitório. Nesse cenário, fora negada a existência da ação de imissão na posse abarcavam todas as possibilidades que poderiam ser ocupadas por essa ação.

A Constituição de 1934 atribuiu primordialmente à União e supletivamente aos Estados a competência para legislar sobre matéria processual, com essa modificação, em 1939 fora promulgado o Código Nacional de Processo Civil o qual incluiu expressamente, em seus arts. 381 a 383, a ação de imissão de posse. O art. 382 postula que a ação de imissão de posse deveria fundar-se em título de domínio, ou nos documentos de nomeação ou eleição do representante da pessoa jurídica, ou, finalmente, no documento da constituição do novo mandatário, sendo assim, observa-se que essa ação fora concebida como petitória.

O art. 381 do Código de Processo Civil de 1939 disciplina que a ação de imissão de posse compete aos adquirentes de bens, para haverem a respectiva posse, contra os alienantes ou terceiros, que os detenham; aos administradores e demais representantes das pessoas jurídicas de direito privado, para haverem dos seus antecessores a entrega dos bens pertencentes à pessoa representada; aos mandatários, para receberem dos antecessores a posse dos bens do mandante.

Devido a esse dispositivo, apresentou-se uma grande questão a ser debatida acerca da legitimidade passiva na ação de imissão de posse, visto que, o dispositivo proclama que caberá essa ação contra o alienante ou terceiros que o detenham. Enquanto ao alienante, não há dúvida, nem maiores questionamentos. Todavia, no que trata aos terceiros, discutia-se se esse “o detenha” referia-se a qualquer terceiro que estava desenvolvendo relação possessória com o bem, ou se esse terceiro era restritivo aos detentores, que se relacionavam com o bem, em uma relação de detenção, como um servidor da posse em nome do alienante.

Com o desiderato de esclarecer essa contradição doutrinária a jurisprudência brasileira se posicionou acerca dessa questão. Apresentavam-se respeitáveis precedentes em ambos os sentidos. Alguns magistrados realizavam uma interpretação stricto sensu da expressão “terceiros que o detenham”, para estes apenas as pessoas que estavam sob um vínculo de subordinação com o alienante poderiam se situar no polo passivo dessa ação. Outros magistrados realizavam uma interpretação lato sensu, para eles poderia configurar no polo passivo da ação de imissão de posse qualquer terceiro que estivesse se relacionando com o bem. Nessa ocasião, mesmo havendo um árduo conflito, predominou a interpretação restritiva do polo passivo.

4. A AÇÃO DE IMISSÃO NA POSSE NO SISTEMA BRASILEIRO DEPOIS DE 1973

Em 1973, o Código de 1939 foi reformado com base no anteprojeto do Ministro Alfredo Buzaid. Pela Lei n. 5.869 de 11 de janeiro de 1973, o Código de Processo Civil foi promulgado. Tal código trouxe modificações acerca da ação de imissão na posse, pois não a prevê expressamente. Alguns doutrinadores contestaram a existência dessa ação no ordenamento jurídico brasileiro, pois o atual Código de Processo Civil não contempla seu nome, apenas o passado. (“No entanto, essa discussão já foi dirimida, pela CF)”.

A ação de imissão na posse, portanto, persiste no ordenamento jurídico brasileiro, no entanto, questões envolvendo a legitimidade das partes que podem configurar o litígio ainda não são pacíficas nem na doutrina nem na jurisprudência pátria.

O anteprojeto do Código de Processo Civil, o qual está sob análise do Congresso Nacional, também incorre na mesma ausência do Código de 1973, pois não prevê a ação de imissão na posse, bem como não esclarece nenhum dos pontos conflituosos e divergentes dessa ação. Permanecendo, desse modo, o estudo, aplicação e esclarecimentos acerca desse instituto um ônus para doutrina e para jurisprudência.

5. Conclusão

Acerca da natureza da ação, se é petitória ou possessória, mesmo visualizando que a jurisprudência posiciona-se majoritariamente em entendê-la como petitória, observa-se que ao compreendê-la dessa forma restringe-se seu polo ativo, pois apenas o proprietário poderá se socorrer dessa demanda para proteger a sua posse. Portanto, mais eficaz seria o posicionamento dos tribunais brasileiros se seguissem o que é ensinado pela doutrina e a encarassem como uma ação possessória.

Quanto à legitimidade passiva, sob a égide do Código de Processo Civil de 1939, mesmo havendo o conflito acerca da interpretação a ser dada a expressão “terceiro que o detenham”, prevaleceu o entendimento que esse terceiro seria apenas o detentor que se relacionaria com o bem sob o vínculo de subordinação com o alienante.

No entanto, na vigência do Código de Processo Civil de 1973 essa interpretação deve ser modificada. Pois, ação de imissão na posse não está prevista expressamente, desse modo, apresenta-se arriscado atribuir uma interpretação restritiva a uma expressão que não está prevista na lei, baseando-se em um entendimento jurisprudencial de décadas anteriores. Em vista disso, a legitimidade passiva a ser demandada em uma ação de imissão na posse deve ser qualquer pessoa que esteja se relacionando com o bem, independente de haver qualquer vínculo, ou ligação, com o alienante.

 

Referências

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. vol. 4: direito das coisas. 25. Ed. São Paulo: Saraiva 2010.

FARIAS Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

FULGÊNCIO, Tito. Da posse e das ações possessórias. Vol. 1. 9. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Ação de imissão na posse. 3. Ed. São Paulo: Revistas dos tribunais, 2001.

·         Os autores do artigo são acadêmicos e pesquisadores do curso de Direito da Universidade de Fortaleza – UNIFOR.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

A função social da propriedade em contraposição ao seu caráter absoluto



                             Por: Ana Cristina Lima Martins¹, Dharana Vieira da Cunha², Débora Ferreira Soares Vidal³,    Yvna Vynbynsky Paiva Maciel4, Francisca Patrícia Gouveia Bezerra5, Beatriz Cabral de Brito6


A ideia de propriedade imóvel adquiriu aspectos distintos ao longo da história da humanidade. Durante as transformações pelas quais passou, teve sempre papel de destaque nos sistemas econômicos e foi influenciada pelos aspectos políticos predominantes de cada época.
É usual atualmente em trabalhos científicos que se encontre o conceito de propriedade extraído de uma análise do texto do artigo. 1.228, caput, do Código Civil atual inferindo-se que esta seria “o poder de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de que quer que injustamente a possua ou a detenha”. Tal conceito oferece uma concepção bastante ampla da extensão dos poderes do proprietário.
Sabe-se que a propriedade tem como características a exclusividade, a perpetuidade e a elasticidade. Este trabalho objetiva, porém, a abordagem específica de uma das características da propriedade, qual seja: o seu caráter absoluto relativizado.
Buscou-se, através de uma análise da história e dos aspectos econômicos-sociais que cercaram a propriedade ao longo tempo, tecer considerações acerca da função social que esta adquiriu, de seu papel no ordenamento jurídico nacional e da sua importância na relativização do caráter absoluto da propriedade.

Desenvolvimento
Durante a fase primitiva da evolução humana não havia uma bem delimitada ideia de propriedade privada e individual no que se relaciona aos bens imóveis. Os grupos humanos utilizavam-se do solo de forma comunitária e extraiam da natureza os materiais necessários à sua sobrevivência. Esgotando-se os recursos de um determinado local, migravam para um outro que melhor os acolhesse, não havendo conexão duradoura entre o indivíduo e o local de sua habitação. Posteriormente, com o desenvolvimento de técnicas de plantio e criação de animais, o homem vislumbrou a possibilidade de fixar-se à terra, não mais sendo subjugado por todas as limitações que o ambiente lhe impunha. A partir desse momento, as células sociais – famílias, clãs – passaram a habitar duradouramente um mesmo espaço físico e a ideia de continuidade no bem cresceu no íntimo da nascente sociedade.
Na Roma antiga, a propriedade se encontrava intimamente relacionada à religião e à família. Existia sobre o local de habitação familiar o caráter sagrado de um templo. A cultura romana de adoração aos antepassados como deuses particulares de cada família – chamados de Deuses Lares – ligava os indivíduos indelevelmente à propriedade. O lar pertencia à família – dirigida pelo Pater – assim como os seus deuses que neste local deveriam ser cultuados por todas as subsequentes gerações. Neste sentido são os ensinamentos de Fustel de Coulanges (2006) em sua obra “A Cidade Antiga”:

Há três coisas que, desde as mais antigas eras, encontram-se fundadas e solidamente estabelecidas nas sociedades grega e itálica: a religião doméstica, a família, o direito de propriedade; três coisas que tiveram entre si, na origem, uma relação evidente, e que parecem terem sido inseparáveis. A ideia de propriedade privada fazia parte da própria religião. Cada família tinha seu lar e seus antepassados. Esses deuses não podiam ser adorados senão por ela, e não protegiam senão a ela; eram sua propriedade exclusiva.” (FUSTEL DE COULANGES, 2006)

Desta forma, podemos observar na sociedade romana a forte feição absoluta, perpétua e individualista da propriedade que conferia ao seu titular poderes plenos com oponibilidade erga omnes.
Após a derrocada do Império Romano provocada pelas invasões bárbaras, a história da humanidade adentra a Idade Média que traz com ela o sistema econômico feudal. O feudalismo é fortemente marcado pela concepção da terra como a principal riqueza. Nesse período, a propriedade de terras trazia consigo o poder político e a condição de nobreza, uma vez que a utilização da terra, o domínio sobre ela e a produção que dela advinha eram a própria base e o sustentáculo da economia e da sociedade feudais. O regime de servidão - no qual os sujeitos não proprietários de terras a ela aderiam como acessórios, ficando “presos a terra” e devendo oferecer sua força de trabalho em troca de abrigo e oportunidade de sobrevivência - foi a mais forte representação da importância e valorização da propriedade imóvel durante o feudalismo. O senhor de terras não só exercia poder soberano sobre suas terras como também sobre os indivíduos que dela dependiam para sua subsistência.
A partir da Baixa Idade Média e da Idade Moderna, o advento da consolidação dos Estados Absolutistas impulsionou o renascimento do capitalismo, do comércio, dos sistemas monetários e da ideia de lucro; mudanças drásticas na sociedade e na economia movidas por uma nova classe ascendente – a burguesia. Porém, foi somente com a Revolução industrial que o capitalismo se tornou mais agressivo e se fortaleceu e foi com a Revolução Francesa que a burguesia se consolidou no poder subvertendo a ordem política vigente e impondo o fim das Monarquias Absolutistas.
Foi no contexto das Revoluções Liberais, do Iluminismo e do Liberalismo que surgiram os chamados Direitos Fundamentais de Primeira Geração que buscavam estabelecer o papel do Estado Liberal como um Estado absenteísta, garantidor e não-interventor buscando proteger e assegurar as liberdades e os direitos individuais, dentre eles o direito de propriedade.
O Estado Liberal do século XIX era caracterizado pela exacerbação do indivíduo, de seus potenciais, liberdades e direitos. Entendia-se que ao ser individual deveria ser assegurado o poder de atuar de forma absoluta e livre exercendo a autonomia da sua vontade, dentre outros aspectos, também sobre aquilo de que fosse proprietário. Desta forma, o Estado não deveria intervir, limitar ou restringir os direitos do proprietário sobre aquilo que lhe pertencia.
Essa concepção individualista foi, gradualmente, perdendo força devido às transformações sociais expressivas que se sucederam ao longo do século XIX e XX. O agravamento das desigualdades sociais, a situação degradante em que a classe trabalhadora se encontrava, os efeitos negativos do capitalismo agressivo e inconsequente, a concentração acentuada de riquezas e a situação de desamparo em que maior parte da população se encontrava trouxeram à tona a necessidade de um Estado de feição mais humanizada, um Estado presente e encarregado de proporcionar ao seu povo o mínimo de dignidade e bem estar. Emergiam, então, os Direitos Fundamentais de Segunda Geração – econômicos, sociais e culturais – com um Estado Social que tinha como função implementar a igualdade material e não somente formal.
Os Direitos Fundamentais de Segunda Geração estavam presentes no Estado Social e atuaram sobre as constituições da época trazendo para o contexto jurídico fortes ideias ligadas à função social dos direitos, dentre eles o de propriedade. Dentre as constituições que incorporaram a função social da propriedade podemos citar a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919 tendo esta influenciado grandemente a Constituição Brasileira de 1934 que inovou em âmbito nacional prevendo em seu art. 113, 17 que o direito de propriedade “não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar”. A partir de então, a sobreposição do direito coletivo ao interesse individual vem sendo reafirmada no ordenamento jurídico nacional chegando à perspectiva atual de função social da propriedade estabelecida pelo texto da Constituição Federal de 1988.
Para que seja possível uma abordagem do alcance atual do princípio da função social da propriedade em nosso ordenamento jurídico se faz necessária, primeiramente, uma breve explanação acerca do fenômeno jurídico da constitucionalização do Direito Civil.
O Direito Civil, durante o período Liberal da evolução da sociedade figurava como o direito do indivíduo, da realização particular do sujeito chegando o Código Civil a ser visto como “a constituição do homem comum” em direta oposição à Constituição política.
Tendo tomando como parâmetro o homem burguês e proprietário, o processo de codificação civil teve o efeito de unir e sistematizar um complexo de normas destinadas exclusivamente às relações pessoais privadas onde se dava total prevalência à autonomia da vontade e à liberdade plena de cada um para exercer seus direitos sem restrição por parte do Estado.
A Constituição política, por outro lado, tinha como função precípua a delimitação de um Estado Mínimo, buscando restringir a atuação deste e a possibilidade de interferência do poder público na esfera das relações patrimoniais privadas.
Como já dito, os reflexos desse exacerbado individualismo jurídico e da patrimonialização do Direito Civil, foram as por profundas injustiças sociais encobertas pelo manto de uma igualdade formal e de uma liberdade que raramente alcançava a parcela da população composta pelo homem comum.
Porém, como visto anteriormente, a evolução dos direitos fundamentais operou uma transformação significativa nos ordenamentos jurídicos em geral. Ideias como a de dignidade da pessoa humana, bem comum, igualdade material e efetivação de direitos alcançaram as Constituições e elevaram-se à categoria de princípios. Nascia, então, o Estado Social que, nas palavras de Paulo Luiz Netto Lôbo é, no plano do direito, “todo aquele que tem incluída na Constituição a regulação da ordem econômica e social.” Referindo-se ainda ao Estado Social e ao modelo constitucional deste, ensina o aludido autor:
Além da limitação ao poder político, limita-se o poder econômico e projeta-se para além dos indivíduos a tutela dos direitos, incluindo o trabalho, a educação, a cultura, a saúde, a seguridade social, o meio ambiente, todos com inegáveis reflexos nas dimensões materiais do direito civil” (Paulo Luiz Netto Lôbo, 1999)
A Constituição passa, então, a ter a função de limitadora do poder econômico buscando coibir excessos na autonomia da vontade privada e fazendo com que haja a prevalência do interesse coletivo sobre o individual. Por fim, a Carta Política passa a ter, como principal objetivo, a promoção da dignidade da pessoa humana.
Nesse contexto, a Constituição se torna o fundamento de validade para todo o ordenamento jurídico, irradiando seus princípios para a legislação infraconstitucional que deve passar a ser então interpretada segundo a Lei Maior, não sendo aceitável que esteja em desconformidade com ela. Os princípios e normas constitucionais passam a ter aplicabilidade imediata, impondo-se inclusive no seio das relações particulares de acordo com a eficácia horizontal dos seus direitos fundamentais.
Desta forma, a Constituição e o Código Civil, que antes pertenciam a realidades distintas e até opostas passam a ser interpretados em unicidade, considerando-se a lei civil segundo os preceitos constitucionais. Nos dizeres de Paulo Lôbo:
A mudança de atitude é substancial: deve o jurista interpretar o Código Civil segundo a Constituição e não a Constituição segundo o Código, como ocorria com frequência.” (Paulo Luiz Netto Lôbo, 1999).
O cenário jurídico nacional, com a Constituição Federal de 1988, apresenta-se profundamente vinculado à ideia de função social dos direitos defendida por Léon Duguit no início do século XX. Conforme Carlos Roberto Gonçalves (2012), Duguit é considerado precursor da ideia de que os direitos só se justificam pela missão social para a qual devem contribuir.
Em seu artigo 5º, inciso XXII a atual constituição garante o direito de propriedade afirmando, logo no inciso subsequente, que esta deverá atender a sua função social. O texto constitucional vincula também à função social da propriedade (art. 170, III) toda a ordem econômica de forma a deixar evidente a preocupação de se tutelar o interesse da coletividade acima do interesse individual. Neste sentido, citamos mais uma vez Paulo Lôbo quando diz que:
A função social é incompatível com a noção de direito absoluto, oponível a todos, em que se admite apenas a limitação externa, negativa. A função social importa limitação interna, positiva, condicionando o exercício e o próprio direito. Lícito é o interesse individual quando realiza igualmente, o interesse social. O exercício do direito individual da propriedade deve ser feito no sentido da utilidade não somente para si, mas para todos. Daí ser incompatível com a inércia, com a inutilidade, com a especulação” (LÔBO, 1999)
Com a finalidade de possibilitar a efetivação da função social da propriedade, a Constituição dispõe de importantes mecanismos como o parcelamento compulsório (art. 182, § 4º, I), a cobrança de impostos progressivos no decorrer do tempo (art. 182, § 4º, II) e, por fim a desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública (art. 182, § 4º, III) todos destinados ao bem imóvel urbano que não esteja sendo utilizado ou esteja sendo subutilizado, ou seja, ao qual não se esteja proporcionando a função social a que se destina (art. 182, §4º).
O texto constitucional estabelece, ainda, a possibilidade de desapropriação por interesse social de imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social (art. 184, caput) estabelecendo, inequivocamente a utilidade dada à propriedade imóvel como fator indispensável capaz de se sobrepor inclusive ao direito de propriedade que vai perdendo, desta forma, seu caráter absoluto.
Afinando-se à Constituição de 1988, o atual código civil dispõe, em seu artigo 1.228, §1º que “O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”
É válida a referência a Caio Mário da Silva Pereira sobre a função da propriedade quando diz que:
Os bens são dados aos homens não para que dele se extraiam o máximo de beneficio e bem-estar com sacrifício dos demais, porém, para que os utilizem na medida em que possam preencher a sua "função social". Nessa ordem de idéias, defende o direito positivo que "o exercício do direito de propriedade há de ter por limite o cumprimento de certos deveres e o desempenho de tal função”. (Caio Mário da Silva Pereira, 2010).
Além do Código Civil e da Constituição Federal, diversas outras leis impõem limitações ao direito de propriedade tais como a Lei de Proteção ao Meio Ambiente, o Código Florestal, o Estatuto da Terra, o Estatuto da Cidade, o Plano Diretor (obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes), o Código de Mineração, etc.
Conclusão
Toda a evolução pela qual passou a humanidade ao longo da história teve o condão de modificar, na conformação dos ordenamentos jurídicos o entendimento a respeito da propriedade e qual deveria ser o seu papel na sociedade. Entende-se atualmente que a propriedade não mais conserva o caráter absoluto que ostentou outrora devido às inúmeras limitações decorrentes do direito de vizinhança, da necessidade de proteção ambiental e, sobretudo do princípio da função social da propriedade.
O direito de propriedade não mais figura somente como direito subjetivo pertence ao indivíduo e que se destina a satisfação única deste. Deve ser também entendida como o direito da coletividade à sua destinação econômica e produtiva. A função social da propriedade é exemplo da nova concepção constitucional fundamentada no princípio da dignidade da pessoa humana e na mudança de perspectiva do direito civil, que abrandou seu caráter individualista e patrimonialista. Deste forma, conclui-se que a extensão dos poderes do proprietário sobre aquilo que lhe pertence encontra-se hoje ligada à capacidade que tenha de realizar o bem social e contribuir para uma sociedade mais igualitária.


Referências

MORAIS, Alexandre de. Direitos humanos e fundamentais, teoria geral. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2005.

PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil, v. 4, direitos reais. 23ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 71.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, v. 5, direito das coisas. 7ª ed. São Paulo: Saraiva,
2012.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, v. 5, direitos reais. 5º ed. São Paulo: Atlas, 2005.

BRAGA, Roberta Chaves. Direito de propriedade e a Constituição Federal de 1988. Fortaleza: 2009

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito civil. Revista de Informação Legislativa - Secretaria de Edições Técnicas do Senado Federal, v. 36, n. 141, Brasília, 1999, p. 99-109.

AGUIAR, Reinaldo Pereira. O Direito de Propriedade. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,o-direito-de-propriedade,37138.html>, Acesso em: 08 de setembro de 2012.

LEITE, Ana Luisa Ribeiro. Desapropriação em face da função social da propriedade. Disponível em: <http://www.webartigos.com/artigos/desapropriacao-em-face-da-funcao-social-da-propriedade/89689/#ixzz26YlohArA>, Acesso em: 17 de setembro de 2012.


* As autoras são acadêmicas do curso de Direito da Universidade de Fortaleza - UNIFOR

domingo, 30 de setembro de 2012

A TRANSFERÊNCIA DA PROPRIEDADE IMÓVEL PRIVADA FACE O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO


Maria das Graças Cabral Galdino*

 

RESUMO

O presente artigo abordará alguns aspectos relevantes para que se efetive a transferência da propriedade imóvel privada no Brasil. Com frequência observa-se no âmbito judicial e/ou extrajudicial conflitos envolvendo a propriedade imobiliária, e que poderiam ser evitados, caso algumas precauções fossem tomadas logo no início das negociações. O sistema jurídico brasileiro estabelece, que a transferência da propriedade imóvel só se efetiva através do registro do título translativo no Registro de Imóveis. Então, com base na legislação pertinente e na doutrina dominante, alguns comentários serão feitos a respeito dos títulos translativos registráveis, e de alguns princípios do registro imobiliário.

Palavras-chave: propriedade imóvel; transferência da propriedade imóvel; títulos translativos; princípios do registro imobiliário.
 

1 INTRODUÇÃO
No transcorrer dos tempos observa-se constantemente a propriedade imóvel como objeto de negócios jurídicos que geram constantes conflitos. É considerável o número de problemas envolvendo a transferência de imóveis, levando os interessados à busca de soluções através das Corregedorias Gerais de Justiça dos Estados, e/ou pelas vias contenciosas.

É comum ouvir-se de muitas pessoas, alegres comentários relacionados à realização de um sonho há muito almejado, e que se concretizaria na aquisição da casa própria. Como também, a satisfação daqueles que anseiam vender seus imóveis objetivando a realização de outras transações negociais.

Entretanto, passados os primeiros momentos da realização do negócio, muito comumente através dos contratos de promessa de compra e venda, surgem os verdadeiros problemas quando da efetivação da transferência da propriedade junto ao registro imobiliário.

Em Fortaleza/CE, por exemplo, pode-se observar no gráfico abaixo, realizado pelo Instituto de Pesquisa e Estatística do SECOVI-CE (INPESCE), o grande volume de vendas de imóveis ocorridos entre os anos de 2001 a 2010.

 
                                       Gráfico demonstrativo do volume de vendas de imóveis em Fortaleza - Ceará
                                         (http://www.secovi-ce.com.br/index. php? option=com_content&view=article&id– i – Acessado em: 28/09/2012).

 
Não obstante o montante de alienações apresentado no gráfico acima, grande número dessas transações estarão envolvidas em irregularidades, que privarão a transferência da propriedade, gerando decepções e conflitos que muito comumente envolvem vendedores, compradores, corretores de imóveis, quando não, os ofícios de notas e de registro imobiliário.

Vale ressaltar que segundo o ordenamento jurídico brasileiro, o proprietário é aquele que “tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.” (Artigo 1.228 do Código Civil).

Ou seja, ser proprietário é ter, por exemplo, a faculdade de morar no seu imóvel, ou se preferir, alugá-lo, ou ainda dar em garantia hipotecária aos seus credores. Ser proprietário é poder dispor de parte de seus poderes em favor de outrem, constituindo um usufruto, ou contratando com alguém uma concessão de superfície. Ou ainda, ter o direito de discutir limites e demarcações com seus confinantes.

Ser proprietário é ter legitimidade para mandar demolir construções que desrespeitem a especialização de seu imóvel, ou reivindicá-lo das mãos de quem quer que o detenha sem o título de domínio. Ser proprietário é a qualquer tempo poder alienar gratuita ou onerosamente a sua propriedade, dentre várias outras possibilidades estabelecidas em lei.

Entretanto, o que se faz necessário para haja a efetiva transferência da propriedade, e com esta o exercício das faculdades que a legislação civil preceitua? O presente trabalho tem por escopo pontuar alguns aspectos relevantes para que se efetive a aquisição da propriedade imóvel, logicamente sem a pretensão de esgotar o assunto.

Far-se-á uma abordagem de preceitos legais e princípios, que se observados evitar-se-á alguns escolhos, que comumente levam a cercear a concretização do negócio imobiliário. Não obstante, é importante destacar que no momento da aquisição de um imóvel, deve-se deixar de lado um pouco do “encantamento e dos sonhos”, para buscar “racionalmente” analisar se o desejado imóvel atende aos requisitos legais que permitirão de fato e de direito a transferência da propriedade, que é a pretensão almejada por vendedores e compradores.


2. A PROPRIEDADE PRIVADA

 No que concerne à propriedade privada, Arnaldo Rizzardo, assevera que:

 “No Direito Romano, o termo técnico para designar propriedade era dominium (o domínio) enquanto designava-se o proprietário de dominus (o senhor). Adveio, posteriormente, o termo proprietas, com o significado de referência à qualidade de ser própria a coisa, de pertencer de modo exclusivo e absoluto ao proprietário. O termo dominium passou a exprimir o poder do proprietário sobre a coisa que lhe pertencia, ou a soma dos poderes que lhe competia. Admitiu-se, assim, ao lado do dominus proprietatis, o dominus usufructus. De modo geral, há sinônimo no emprego dos dois termos”. (2007: p. 183)

Adiante, estabelece o autor que “o vocábulo ‘domínio’ encerra um conteúdo que se encontra na palavra ‘propriedade’; esta, porém, além de ser aplicável aos móveis e imóveis, compreende também as coisas incorpóreas, desdobradas na propriedade intelectual, que se subdivide em propriedade literária, artística, científica e industrial”. (2007: p. 184)

No Brasil, os imóveis de domínio privado, segundo preceitua Pedro Elias Avvad, em sua obra Direito Imobiliário (Teoria Geral e Negócios Imobiliários) “tiveram a sua origem, basicamente, no instituto da sesmaria”. De acordo com a narrativa do autor, logo depois do descobrimento do Brasil, as novas terras foram incorporadas ao domínio da Coroa portuguesa, e com a criação das capitanias hereditárias, o rei delegava aos seus titulares (donatários), o poder de conceder sesmarias às pessoas que se estabelecessem em suas capitanias. (2012: p. 21)

Com o advento da Lei nº 601 de 1850 foi criado o “registro do vigário ou paroquial das terras possuídas por particulares”, tendo apenas o caráter de cadastramento. O sistema fundiário privado passou a normatizar-se, portanto, a partir da promulgação da referida lei. (2012: p. 23)

Já em pleno século XX foi promulgado o Decreto nº 4.857/1939 que trouxe o sistema do registro imobiliário através das Transcrições, onde no Livro 3 eram feitas as transmissões do domínio, e no Livro 2 a inscrição hipotecária.

Até que no ano de 1973, foi promulgada a Lei 6.015 (Lei dos Registros Públicos) que objetivando a autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos que envolvam a propriedade imóvel, pautou-se em princípios registrais que serão comentados oportunamente.

Hodiernamente, o Código Civil brasileiro estabelece em seu artigo 1.245, que a propriedade privada só se transfere “mediante o registro do título translativo no registro de imóveis”.

Isto posto, constata-se que o sistema registral brasileiro é bifásico, pois a transferência da propriedade imóvel passa num primeiro momento pela elaboração do “título translativo”, o qual posteriormente será apresentado ao registro imobiliário, para que submetido ao exame da legalidade seja registrado, e então se faça a transladação do domínio para o novo adquirente.

Em seguida, nos §§1º e 2º do referido artigo, o legislador estabelece que “enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel”, e que “enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel”.

Observa-se, portanto que a legislação brasileira é enfática em asseverar que somente através do registro do título translativo no registro imobiliário, que a propriedade imóvel se transfere, e que enquanto não houver cancelamento do registro, aquele que figurar como proprietário poderá exercer todas as faculdades que lhe são atribuídas por lei.

Diante do exposto, no item subsequente, tratar-se-á dos instrumentos de transferência da propriedade imóvel que a legislação pertinente atribui legitimidade para serem apresentados ao CRI para o devido exame e posterior registro.

3. TÍTULOS TRANSLATIVOS

Para tratar dos títulos translativos, faz-se por oportuno buscar na Lei 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos) o artigo 221 que preceitua:

Somente são admitidos a registro”: I – escrituras públicas, inclusive as lavradas em consulados brasileiros; II – os escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes e testemunhas, dispensado o reconhecimento quando se tratar de atos praticados por entidades vinculadas ao Sistema Financeiro da Habitação; III – atos autênticos de países estrangeiros, com força de instrumento público, legalizados e traduzidos na forma da lei, e registrado no Cartório do Registro de Títulos e Documentos, assim como sentenças proferidas por tribunais estrangeiros após homologação pelo Supremo Tribunal Federal; IV – cartas de sentença, formais de partilha, certidões e mandatos extraídos de autos de processo; V – contratos ou termos administrativos, assinados com a União, Estados, Municípios ou o Distrito Federal, no âmbito de programas de regularização fundiária e de programas habitacionais de interesse social, dispensado o reconhecimento de firma.” (grifo nosso)

Quando o legislador utiliza-se do advérbio “somente” no caput do artigo supramencionado, para elencar os títulos translativos objeto de registro, fica estabelecido de forma irrefutável, que somente os admitidos por lei, serão acolhidos no registro imobiliário, para que sejam examinados e registrados.

Para uma melhor compreensão do assunto, far-se-á alguns breves comentários acerca dos instrumentos públicos e particulares a que se reporta o legislador no artigo em comento.

3.1. Escrituras Públicas

No que concerne às escrituras públicas a que se refere o inciso I do artigo 221 da LRP, segundo o conceito de Leonardo BRANDELLI (2007: p. 273) “é o ato notarial mediante o qual o tabelião recebe manifestações de vontade endereçadas à criação de atos jurídicos”.

A legislação civil brasileira adota a regra da liberdade das formas, conforme previsto no artigo 107 do CC, quando estabelece que “a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente o exigir”. Diante da previsão legal, qualquer contrato poderá ser celebrado por escritura pública. (2007: p. 274) Não obstante, no que concerne ao título translativo de propriedade imóvel, o artigo 108 da legislação supramencionada preceitua que:

“Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem a constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País”. (grifo nosso)

Em face da previsão legal, todos aqueles que estiverem por realizar negócio jurídico que envolva a transferência de imóveis de valor superior a trinta vezes o salário mínimo vigente no Brasil (hoje unificado), deverá obrigatoriamente recorrer ao Tabelionato de Notas para que o tabelião lavre sua escritura pública de compra e venda, posto que, não obedecido o comando legal, o título translativo apresentado será devolvido pelo oficial registrador, por ser tal negócio considerado inválido.

Além da situação prevista no artigo supramencionado, dispõe o artigo 1.793 da legislação civil, que a cessão de direitos hereditários somente poderá ser celebrada por escritura pública, como também, o pacto antenupcial sob pena de nulidade, conforme o disposto no artigo 1.653 da referida legislação.

Outros exemplos de negócios jurídicos envolvendo bens imóveis que obrigatoriamente deverão ser instrumentalizados por escritura pública, sujeitos a invalidade, são os que instituem direito de superfície (art. 1.369 do CC) e o bem de família instituído inter vivos (art. 1.711 do CC), dentre outros.

Oportuno pontuar que com o advento da lei 11.441/2007, os Tabelionatos de Notas passaram a realizar divórcios e inventários extrajudiciais. Com isso, os tabeliães passam a elaborar escrituras públicas de inventário, partilha e adjudicação, as quais também serão apresentadas ao registro imobiliário para análise, registro e efetiva transferência de propriedade.

3.2. Escritos Particulares

Quanto aos escritos particulares, conforme firmado no inciso II do artigo 221 da LRP, somente serão acolhidos para registro no Cartório de Registro de Imóveis (CRI), se determinados em lei. Vale ressaltar algumas situações, em que a legislação autoriza que instrumentos realizados por particulares sejam considerados pelo oficial registrador títulos translativos aptos para serem registrados.

A esse respeito, o referido artigo 108 do CC, já estabelece que caso o imóvel objeto da transação apresente valor inferior a trinta vezes o salário mínimo vigente no País, poderá ser realizado por escritos particulares.

Já o inciso II do artigo 221 da LRP, se reporta aos contratos particulares oriundos do Sistema Financeiro da Habitação – SFH (Lei 4.380/1.964), que têm força de escritura pública, dispensando-se inclusive o reconhecimento de firma de contratantes e testemunhas.

Oportuno pontuar a Lei 8.934/1.994 (Lei de Registro de Empresas), que em seu artigo 64 preceitua que:

“A certidão dos atos de constituição e de alteração de sociedades mercantis, passadas pelas Juntas Comerciais em que foram arquivados, será documento hábil, para a transferência, por transcrição no registro público competente, dos bens com que o subscritor tiver contribuído para a formação ou aumento do capital social”.

Posteriormente com o advento da Lei 9.514/1997, que veio disciplinar a Alienação Fiduciária em Garantia para imóveis ficou estabelecido em seu artigo 38 in verbis:

“Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública”.

De acordo com a lei supracitada, os contratos de alienação fiduciária poderão ser contratados por pessoa física ou jurídica, não sendo privativo das instituições financeiras que operam no Sistema Financeiro Imobiliário – SFI. (§ 1º do art. 22)

Portanto, em face das legislações específicas acima apresentadas, observam-se casos pontuais, em que o instrumento particular será considerado título translativo apto a ser registrado pelo Cartório de Registro de Imóveis (CRI).

4. PRINCÍPIOS DO REGISTRO IMOBILIÁRIO

Depois da análise feita aos títulos translativos autorizados por lei, faz-se por oportuno algumas considerações sobre os princípios que regem o registro imobiliário, posto que, obrigatoriamente todos os instrumentos, não importando se escrituras públicas lavradas nos tabelionatos de notas ou oriundos do poder judiciário, bem como os escritos particulares, todos deverão estar acordes com os princípios registrais.  

Segundo AVVAD, “os princípios são critérios que servem para a elaboração e a interpretação das leis”. (2012: p. 294) O registro imobiliário tem, assim, seus princípios ou critérios, que serão examinados a seguir.

4.1. Princípio de presunção de Fé Pública – A fé pública está intimamente ligada à presunção de validade do registro. O oficial registrador tem fé pública, daí os atos por ele praticados presumem-se autênticos perante as suas declarações e certidões, até prova em contrário. (2012: p. 294)

4.2. Princípio da Prioridade (ou Preferência) - O que atribui prioridade a um título é a ordem de entrada no CRI, ou seja, o título registrado em primeiro lugar tem preferência em relação a todos os outros que forem apresentados. (Lei 6.015/73, arts. 12 174 e 175).

4.3. Princípio da Especialidade – Refere-se à identificação do imóvel objeto do registro. Tanto o imóvel como os contratantes devem estar perfeitamente identificados e particularizados, tornando o imóvel inconfundível. (Art. 225 da Lei 6.015/73)

4.4. Princípio da Disponibilidade - Significa que ninguém pode transferir mais direitos do que os constituídos no registro, devendo este princípio ser observado em relação ao imóvel, como também aos contratantes.

4.5. Princípio da Continuidade - É a viga mestra do nosso sistema registral, que garante a segurança dos registros imobiliários. Cada registro deve apoiar-se no anterior, formando um encadeamento histórico de titularidade, a vista do qual, só se fará o registro de um direito se o outorgante dele figurar no registro anterior como seu titular. (Art. 195 e 222 da LRP)

4.6. Princípio da Obrigatoriedade - Para ser titular do domínio é obrigatório o ato de registrar. (Art. 1.227; Art. 1.245 e §§ 1º, 2º do CC)

4.7. Princípio da unicidade - Cada Matrícula somente pode ter em sua abertura um único imóvel, mesmo que depois possa o imóvel primitivo originar vários outros. (Art. 176, §1º, I e Art. 227 da LRP).

4.8. Princípio da Instância ou Reserva de Iniciativa - É aquele pelo qual, em regra, o registrador só pode praticar atos de registro e averbação, se solicitado pelo interessado. (Art. 13, I, II, III da LRP).

4.9. Princípio da Territorialidade ou Circunscrição - Delimita a competência em razão do local, para os atos de registro. (Art. 169 da LRP e Art. 12 da Lei 8.035/94)

4.10. Princípio da Legalidade- Impõe o exame prévio da legalidade, validade e eficácia dos títulos, a fim de obstar o registro de títulos inválidos, ineficazes ou imperfeitos. (Art. 481, XIII, do Provimento 6/2.010 da CGJ/CE).

4.11. Princípio da Publicidade - Faz obrigatório o registro do ato inerente a imóveis para efeito de torná-lo suscetível de ser conhecido por qualquer pessoa. (Art. 17 da LRP)

4.12. Princípio da Concentração - O Princípio da Concentração é um corolário importante do princípio da publicidade porque vai definir qualquer conteúdo de atos registrais passíveis de figurarem na matrícula do imóvel de modo que possam ser publicizados e opostos a terceiros a partir da respectiva certidão.

O Princípio da Concentração fundamenta-se em que a Matrícula deve ser tão completa de informações quanto possível, de forma que dispense diligências a outras fontes de informações relativas ao imóvel, fazendo com que essa fonte única de informação seja sinônimo de segurança jurídica.

Isto posto, vale mais uma vez ressaltar que a observância aos princípios registrais se faz imprescindível para que se realize o registro do instrumento de transmissão, como reiteradamente reportou-se o presente artigo, alcançando-se assim a efetiva propriedade e suas consequências no mundo jurídico.
 

5. CONCLUSÃO

Diante do exposto fica claro que, a legislação pátria exige o registro do título translativo para que se transfira a propriedade imóvel. Não obstante, muito comumente pessoas entendem ser proprietárias, por terem em suas mãos um contrato de compra e venda assinado pelas partes e testemunhas, ou mesmo um instrumento público oriundo dos tabelionatos de notas ou do poder judiciário. Na realidade fática e de direito, o adquirente tornou-se possuidor do imóvel.

Em termos práticos significa que poderá usar, fruir, dispor de sua posse, como também defendê-la. Entretanto, não poderá hipotecá-lo, nem constituir nenhum outro direito real sobre o mesmo, muito menos transferir a propriedade para outrem. Além dos possíveis dissabores advindos, caso o proprietário que figura no registro imobiliário como tal vier a falecer, caso em que a herança se transfere automaticamente para os herdeiros do de cujus.

Portanto, para concluir o presente artigo apresentar-se-á algumas cautelas gerais, elencadas por Pedro Ellias Avvad, em sua obra Direito Imobiliário (2012: p. 89/90) para que se evitem surpresas desagradáveis, senão vejamos:

a)      Exigir-se a Certidão do Registro de Imóveis, objetivando conhecer o atual proprietário e a existência, ou não, de ônus reais, as características, a descrição e as confrontações do imóvel objeto do negócio imobiliário.

b)      Certidões dos Distribuidores da Justiça, estadual e federal, pessoais e reais, com a finalidade de conhecer-se a existência, ou não, das ações judiciais que tenham por objeto o imóvel a ser adquirido, ou contra o transmitente.

c)      Certidões relativas aos impostos incidentes sobre o imóvel e sobre o alienante, já que eventuais dívidas com impostos têm natureza propter rem, isto é, acompanham a coisa.

d)     Quitação para com o condomínio, no caso do bem adquirido integrar condomínio edilício (prédio de apartamentos, por exemplo).

e)      Conhecimento prévio de sujeição do imóvel à desapropriação, com relação à existência de decreto declarando-o de utilidade ou de necessidade pública (Decreto-lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941); de interesse social (Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962), ou de interesse social para fins de reforma agrária (Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, art. 5º, e Lei Complementar nº 76, de 6 de julho de 1993).

f)       Se o imóvel for rural, é preciso realizar levantamento no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, para saber se existe algum projeto para sua desapropriação.

g)      Tratando-se de imóvel urbano, é importante verificar se existem projetos da Prefeitura que tenham por objeto o imóvel, no todo, ou em parte.

h)      É preciso, também, ter cautela quanto à existência de locatário, donatário, comodatário, usufrutuário e compossuidor, mesmo com posse injusta, mas com pretensão à aquisição da propriedade por qualquer espécie de usucapião.

i)        De igual modo deve-se proceder a levantamento quanto à existência de interesse público na preservação ou incidência de tombamento ou outras limitações ao direito de propriedade de natureza legal, administrativa, ou judicial.

j)        Se o alienante for pessoa jurídica, devem ser exigidas certidões negativas de débitos fiscais, trabalhistas e com a previdência social, ou, em sendo pessoa física, a declaração de não contribuinte como empregador.

Finaliza o autor sugerindo que embora não tenhamos a previsão legal de se produzir documento que comprove a inexistência de união estável, é absolutamente recomendável, em se tratando de alienante solteiro, separado judicialmente ou divorciado, que se exija comprovação de existência, se positiva, ou declaração de inexistência, sob as penas da lei, em hipótese contrária, haja vista o disposto no art. 1.725 do Código Civil:

“Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”.

Isto posto, vale ressaltar que o presente trabalho está longe de esgotar todos os aspectos que envolvem a transferência da propriedade imóvel, pois são muitos os requisitos legais a serem considerados, mas que poderão ser tratados oportunamente em outros trabalhos.   

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AVVAD, Pedro Elias. Direito Imobiliário (Teoria Geral e Negócios Imobiliários). 3ª edição. Rio de Janeiro/RJ. Editora Forense. 2012.

BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do Direito Notarial. 2ª edição. São Paulo/SP. Editora Saraiva. 2007.

CENEVIVA, Walter. Lei de Registros Públicos comentada. 20ª edição. São Paulo/SP. Editora Saraiva. 2010.

RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas. 3ª edição. Rio de Janeiro/RJ. Editora Forense. 2007.
 
*Maria das Graças Cabral Galdino é professora e pesquisadora de Direito das Coisas, Direito Imobiliário e Direito Notarial nas turmas de graduação e pós-graduação de Direito Imobiliário Notarial e Registral na Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Ex-assessora jurídica do 1º e 2º Ofício de Notas e Protestos de Títulos da cidade de Fortaleza - CE.