Cibele Alexandre Uchoa*
RESUMO
O presente estudo tem como intuito expor, ainda que de
forma perfunctória, a evolução da noção de propriedade em nosso ordenamento jurídico,
buscando, inicialmente, dar extensão geral como forma de sustentáculo às
mudanças nos textos constitucionais brasileiros. Dessa forma, apresentam-se as
principais mudanças ocorridas em cada período histórico até que se chegue às
conceituações do texto constitucional hodiernamente vigente. Busca-se aqui
analisar a propriedade, amplamente estudada com enfoque civilista, sob a
perspectiva histórico-constitucional, abordando, por derradeiro, o caráter
funcional.
PALAVRAS-CHAVE:
PROPRIEDADE;
GARANTIA CONSTITUCIONAL; DIREITO FUNDAMENTAL; INTERESSE COLETIVO; FUNÇÃO
SOCIAL.
INTRÓITO
A
concepção que foi dada à propriedade privada evoluiu com o passar do tempo,
transmutando-se de uma feição absoluta do interesse privado sobre a coisa para
uma prevalência do interesse coletivo, entendido como o interesse de fazer com
que a propriedade cumpra sua função social. Essa evolução e transformação
ocorridas no conceito de propriedade privada impactaram sobre o modo com que o
Estado se relaciona com esse direito, assim como sobre a relação do
proprietário com a coisa.
As
principais transformações ocorridas no direito de propriedade advêm, mormente,
do trânsito do Estado Liberal ao Estado Social, caracterizado esse tempo
histórico decorrido pela transição entre o caráter absoluto e individualista da
propriedade, que se postergou até meados do século XVIII e marcou o período do
absolutismo europeu; e entre o caráter mais coletivo e abrangente da
propriedade, ou seja, a propensão da propriedade quando não dotada de uma função
social, não mais estando, portanto, sob o direito irrestrito e ilimitado de seu
proprietário, sendo esta concepção uníssona às concepções igualitárias.
DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO SOCIAL: PRINCIPAIS
MUDANÇAS OCORRIDAS NO CARÁTER ABSOLUTO DA PROPRIEDADE
O
ideal de liberdade se perfilou de forma majorada após a Revolução Francesa, os
direitos fundamentais ganharam espaço à mesma medida que os privilégios da
nobreza eram diminuídos do contexto político social. Não obstante, mesmo no
Estado Liberal o caráter absoluto da propriedade foi conservado, afinal era o
que traduzia o ideal de liberdade, fundado nas conhecidas bases
individualistas.
Apesar
de a Revolução Francesa firmar a famosa “liberte,
égalité, fraternité”, o que muito se confirmava era o ideal de liberdade,
instituído para garantir ainda mais o individualismo e a conservação da
propriedade. Voltaram-se, contudo, as atenções a interesses da coletividade,
interesses igualitários, voltados também à realização da justiça. Dessa maneira
os ideais de liberdade se tornaram insuficientes.
A
passagem do Estado Liberal ao Estado Social se deu com as garantias
fundamentais de segunda geração (BONAVIDES, 2012, p. 565-566). É nesse contexto
que a natureza absoluta da propriedade enfraquece, ocasionando sua
relativização.
No
Estado Social “os direitos individuais não devem mais ser entendidos como
pertencentes ao indivíduo em seu exclusivo interesse, mas como instrumento para
a construção de algo coletivo” (BERCOVIVI, 2005, p. 142-143). O conceito de
propriedade evoluiu ao status de direito fundamental, com o interesse coletivo
tutelado pela função social, o que deu azo a inúmeras contraversões
doutrinárias, dentre estas, a consideração, por alguns autores, da função
social como fator limitante à propriedade.
As
Constituições brasileiras de 1824 e de 1891 apresentavam o direito de
propriedade ainda com o caráter absoluto, não assegurando o direito de
propriedade pleno somente nos casos de desapropriação.
A
mudança introduzida pela Constituição de 1934, a garantia do poder de
propriedade não ser exercido contra o interesse social ou coletivo, foi fruto
de três acontecimentos históricos ocorridos na segunda metade do século XX,
iniciando-se com o agrupamento dos direitos sociais do homem em consonância com
a participação social, pela Constituição mexicana (FIGUEIREDO, 2010, p.86-87).
Em sequência, a Revolução Russa de 1917 deu destaque às ideias de Marx, Engels
e Lenin, com os direitos econômicos e sociais. O último acontecimento foi a
introdução do princípio da função social da propriedade no texto da
Constituição alemã de Weimer de 1919. A Constituição de 1946 foi o
primeiro texto constitucional brasileiro a adotar o aspecto funcional da
propriedade, seu art. 147 dispunha da seguinte maneira: “O uso da propriedade
será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do
disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade com
igual oportunidade para todos.” Na Constituição de 1967, o art. 167 dispõe da
mesma maneira, estabelecendo que “a ordem econômica fundada na valorização do
trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos uma
existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os
seguintes princípios: [...] III- função social da propriedade.”
Na Constituição de 1988 à
propriedade é atribuída a condição de garantia e direito fundamental. O direito
de propriedade se tornou inviolável, unindo a concepção da garantia à
propriedade ao atendimento de sua função social, dessa maneira está inserida no
título dedicado aos direitos e garantias fundamentais, elencado no capítulo dos
direitos e deveres individuais e coletivos, traduzindo significativamente a
dimensão constitucional garantística da propriedade.
Da
seguinte maneira disciplina a Constituição de 1988 acerca da propriedade,
harmonizando os fundamentos e os objetivos do Estado Democrático de Direito:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXII - é garantido o direito
de propriedade;
Em
sentido explicativo, o ministro Celso de Mello (ADI 2.213-MC, em 04/04/2002,
Plenário, DJ de 23-4-04) expôs de forma bastante didática:
O direito
de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa
grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é
inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera
dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas
e os procedimentos fixados na própria Constituição da República. O acesso à
terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e adequado do
imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e a
preservação do meio ambiente constituem elementos de realização da função social
da propriedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos
chegar à ilação, depois de finalizado o breve estudo, de que a ideia
liberalista enquadrava a propriedade de forma voltada a atender somente as
necessidades patrimoniais, excluindo qualquer característica que pudesse vir a
auxiliar nas demais necessidades humanas, podendo estas ser exemplificadas pela
geração de trabalhos ou produção de alimentos.
Com o
advento do Estado Social e a dotação da propriedade de uma função, devendo esta
ser observada, o ideal de igualdade pode, em teoria, ser atingido de forma mais
completa, sendo de fundamental importância o atendimento dessa função social
para a realização dessa igualdade entre os homens, uma vez que garantidora da
boa utilização e destinação da propriedade.
Destarte,
constatou-se que não há limitação da propriedade ao se exigir o cumprimento se
sua função social, mas uma funcionalização para seu melhor aproveitamento, como
bem explicitado nas passagens anteriores.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 27.
ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento:
uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005.
BRASIL. Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br> Acesso em: 13 de mar. 2013.
________. Constituição
da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br> Acesso em: 13 de mar. 2013.
________. Constituição
dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de setembro de 1946). Disponível em:
< http://www.planalto.gov.br> Acesso em: 13 de mar.
2013.
________. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade
2.213-MC. Brasília, DF, 23 de abril de 2004. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 10 de mar. 2013.
FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. A
propriedade no direito ambiental. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2010.
Nenhum comentário:
Postar um comentário