terça-feira, 28 de maio de 2013

FUNÇÃO SOCIAL SE CONTRAPONDO AO CARÁTER ABSOLUTO DA PROPRIEDADE

                           FUNÇÃO SOCIAL SE CONTRAPONDO 
                    AO CARÁTER ABSOLUTO DA PROPRIEDADE
Jéssica Cristina Melo de Matos[1]
 Natália Moura Furtado[2]
Thais Pinheiro Felipe[3]
INTRODUÇÃO

            A partir da Constituição Federal de 1988, o princípio da função social da propriedade foi positivado, tornando-se direito fundamental. Isso fez com que todos os aparatos legais, como Código Civil, Estatuo da Cidade e Lei 11.977/09 passassem a observar esse princípio nas relações jurídicas que envolvem propriedade.
            Esse princípio limitou o caráter absoluto de propriedade, pois o titular desse direito real não poderá desfrutar como quiser dessa, pelo fato de poder vir a sofrer restrições de ordem constitucional, administrativa, civil e militar.

RESUMO

O foco deste trabalho é a importância da função social da propriedade. Seu objetivo  é revelar que essa não é mais vista sob o aspecto absoluto. A metodologia utilizada foi de caráter descritivo e bibliográfico, por meio de livros de Direito Civil, artigos científicos, e legislação brasileira. A partir dessas fontes, foi possível observar que, desde a a positivação do princípio da funçao social como direito fundamental na Constituição Federal, o seu caráter absoluto tornou-se relativo.
Palvras-chaves: Função Social. Propriedade. Caráter Absoluto

RESULTADOS

O direito da propriedade:

é aquele que uma pessoa singular ou coletiva efetivamente exerce numa coisa determinada em regra perpetuamente, de modo normalmente absoluto, sempre exclusivo, e que todas as pessoas são obrigadas a respeitar. (Gonçalves apud Gonçalves, 2012, p. 206)

          De acordo com o exposto, a propriedade possui caráter absoluto, por ser o mais completo dos direitos reais e pelo fato do seu titular puder desfrutar do bem como quiser, sujeitando-se apenas às limitações impostas em razão do interesse público ou da coexistência de direito de propriedade entre outros titulares. Assim, este direito real é um poder exclusivo, ou seja, é exercido por um titular, mesmo no instituto do condomínio, como explica Diniz (2010, p 132):

[...] convém esclarecer que no caso do condomínio, não desaparece essa exclusividade, porque os condomínios são, conjuntamente, titulares do direito, O condomínio implica uma divisão abstrata da propriedade, pois cada condômino possui uma quota ideal do bem.

            Além disso, configura-se como um direito perpétuo, pelo fato de que não extingue pelo falta de uso, pois enquanto não sobrevier causa extintiva legal ou oriunda da própria vontade do titular, esse direito não perece. Também é um direito elástico, pois poderá haver a transferência dos poderes inerentes a propriedade a outrem, sem que o dono perca a sua propriedade e, quando for extinta essa limitação, será readquirida a plenitude dos seus poderes.
Em relação à propriedade, o legislador não normatizou o seu conceito, mas elencou os seus elementos no artigo 1228 do Código Civil, que dispõe que "o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha".
O uso se refere ao direito que o proprietário possui de empregar a coisa como queira. A faculdade de gozar significa extrair do bem seus benefícios e vantagens, como a percepção dos frutos. O direito de dispor é referente ao fato de o dono ter a possibilidade de alterar a substância da coisa, agravá-la ou aliená-la, enquadrando-se, assim, no direito mais abrangente do proprietário, pois quem pode dispor também pode usar e gozar. Em relação ao poder de reaver, refere-se ao direito de sequela, ou seja, de seguir ou buscar a coisa com quem quer que esteja.
            A Constituição de 1988 flexibilizou o entendimento de que não é mais viável sustentar um conceito absoluto de propriedade, dado que o proprietário está sujeito a restrições, não só de caráter administrativo, militar ou advindo do Código Civil, mas, principalmente, de ordem pública, que é a sua função social. Desse modo, a propriedade assume uma natureza absoluta relativizada, conforme expõe Venosa (2012, p.178): "o direito de propriedade é absoluto dentro do âmbito resguardado do ordenamento", ou seja, o proprietário terá o seu direito condicionado às restrições legais, senão não será protegido pelo sistema jurídico.
Assim, a função social atinge a substância do direito de propriedade, pois a justa aplicação desse direito dependerá do ponto de equilíbrio entre o interesse coletivo e o individual. Isso mitiga a sua natureza absoluta, tornando a propriedade um meio social, onde o proprietário só será resguardado, pela constituição, se desenvolver uma função social nessa.
Portanto, afasta-se o individualismo histórico, que não somente busca coibir o uso abusivo da propriedade, como também procura inseri-la no contexto de utilização para o bem comum.
            A Constituição Federal de 1988 adotou o princípio da função social da propriedade. Como a CF/88 é a norma hierarquicamente superior, todos os outros aparatos legais brasileiros devem obedecer aos princípios constitucionais. Consequentemente, as leis que regulam o direito real, como Código Civil, Estatuto da Cidade e Lei 11.977/09, por exemplo, passaram a observar a norma supracitada nas relações jurídicas referentes à propriedade.
            Um dos institutos jurídicos que revelam a aplicação da finalidade social na propriedade é o usucapião. Este busca proteger quem está fazendo o bom uso da propriedade, e não valorizar quem não a utiliza ou faz mal uso dessa, caracterizando-se, assim, o seu duplo caráter, como explica Nader (2010, p.111), “ao mesmo tempo em que o possuidor adquire o domínio da coisa, o proprietário a perde”.
            Apesar de o meio judicial de proteção à propriedade, ação reivindicatória, ser imprescritível, há uma exceção, o usucapião. Daí, pois, ser chamado de prescrição aquisitiva, segundo Nader (2010), já que, uma vez decorrido o lapso temporal exigido em lei, há uma aquisição da propriedade.
            O usucapião é uma forma de adquirir a propriedade independentemente de vontade do proprietário anterior, em que se regulariza uma situação de fato, transformando-a em jurídica, desde que atendidos os requisitos legais. Segundo Venosa (2012), esses são: posse ad usucapionem, em que há animus domini, ou seja intenção de ser dono, não permitindo a quem seja detentor, locatário, comodatário, por exemplo; pacífica, não sendo contestada pelo legitimado; contínua, sem intervalos de tempo; e justa, sem vícios de violência, clandestinidade ou precariedade.
            Há sete modalidades de usucapião: extraordinária (prevista no artigo 1.238 do Código Civil - CC), ordinária (artigo 1.242 CC), constitucional especial rural (1.239 CC e 191 CF), constitucional especial urbana (artigo 1.240 CC e 183 CF), coletiva (artigo 10 do Estatuto da Cidade - Lei 10.257/01), familiar (1.240-A CC), extrajudicial ( Lei 11.977/09).
            Os caputs dos artigos 1.238 e 1.242, referentes à usucapião extraordinária e ordinária, respectivamente, não exigem uma finalidade, como moradia, trabalho, como se requere nas outras modalidades. Porém, em seus parágrafos únicos, o legislador privilegiou o possuidor que atender à função social, reduzindo em cinco anos, o prazo para usucapir.
            Com exceção dos caputs supracitados, observa-se que a lei estabelece um fim, seja social ou econômico, a todas as modalidades de usucapião, além dos requisitos já mencionados. 
 
CONCLUSÃO

            Diante do exposto, pode-se observar as características da propriedade, dentre as quais, os seu caráter absoluto, o qual passou a sofrer alterações a partir da inserção da função social, na Constituição Federal de 1988.
            Atualmente, o caráter absoluto da propriedade é mitigado pelo princípio da função social, tendo como exemplo prático, o instituto jurídico do usucapião. A partir deste, nota-se que o ordenamento jurídico brasileiro protege quem faz bom uso da propriedade e não valoriza quem não faz.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Código Civil de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 13 mar. 2013.
______. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm> Acesso em: 13 mar. 2013.
______. Lei 10.257/01. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm> Acesso em: 13 mar. 2013.
______. Lei 11.977/09 . Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11977.htm> Acesso em: 13 mar. 2013.
DINIZ. M. H. Curso de Direito Civil Brasil - Direito das Coisas. 27 ed. São Paulo:  Saraiva, 2012. v.4.
GONÇALVES, C. R. Direito Civil Brasileiro - Direito das Coisas. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. v.5.
NADER, P. Curso de direito civil:  direito das coisas. Rio de Janeiro: Forense, 2010. v.4.
VENOSA, S. S. Direito Civil: direitos reais. v.5. 12 ed. São Paulo: Atlas, 2012. v.5.



[1] Graduanda do curso de Direito da Universidade de Fortaleza. jessicamatos_@hotmail.com
[2] Graduanda do curso de Direito da Universidade de Fortaleza. nataliafurtado-@hotmail.com
[3]Graduanda do curso de Direito da Universidade de Fortaleza. thaispinheiro-1@hotmail.com

quarta-feira, 8 de maio de 2013


A FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE

Aixa Bárbara Marques Barbosa*
Ana Maria de Assis Lima*
Thaís Abrahão de Negreiros Lima*

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por escopo esclarecer conceitos de posse e falar sobre sua função social, além de demonstrar sua fundamentação, seu alcance, e como funciona na prática a apreciação desse assunto que se torna cada vez mais frequente objeto de pesquisa, uma vez que é um assunto de inexorável importância para a efetivação da democracia e dos Direitos Fundamentais. Também será mostrado, de forma simples, como a função social da posse é vista no Direito Comparado, especificamente na Angola.
Thomas Ford Hoult (1969), em seu Dicionário de Sociologia Moderna, define função social como sendo “a contribuição que um fenômeno provê a um sistema maior do que aquele ao qual o fenômeno faz parte”. Portanto, sob o aspecto da função social da posse, podemos analisar a contribuição que a posse traz à sociedade. Se levarmos para o lado de que a função social no Direito tem a finalidade primária de tornar os direito mais justos, como dizem alguns doutrinadores, pode-se constar que a função social da posse vem para tornar a posse mais justa, trazendo limitações e restrições para o seu exercício.
Ao pesquisarmos sobre função social no Direito das Coisas, observa-se grande importância dada à função social da propriedade, talvez porque esta esteja codificada expressamente em lei, como vemos claramente no artigo 1228, §1º do Código Civil de 2002, e nos artigos 5º, XXII e XXIII e 170, III ambos da Constituição Federal de 1988. Porém, a posse não possui a mesma codificação e acaba por ser interpretada indiretamente pelos princípios fundamentais, e também pela propriedade. Por isso, este trabalho visa abordar o tema da função social da posse, para que possamos perceber o quanto é importante este instituto, tanto quanto o da propriedade, e como já se verifica a sua aplicação nos dias de hoje, mesmo com a ausência de previsão legal.

DESENVOLVIMENTO

1. Posse e função social

No âmbito do Direito Civil, insere-se o Direito das Coisas, que vem a regular os poderes da pessoa sobre os bens, materiais e imateriais, com exceção dos direitos autorais, que são imateriais e tratados em lei específica. Nesse contexto, destaca-se o instituto da posse.
Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2013), o conceito de posse, no direito positivo brasileiro, é retirado de forma indireta do artigo 1196 do Código Civil de 2002, que define como possuidor aquele que possui de fato o exercício, pleno ou não, de alguns dos poderes da propriedade.
Entretanto, teorias existem que procuram explicar o conceito de posse. Em geral, essas se dividem em três grupos: as subjetivas, as objetivas e as sociológicas. Em suma, para as teorias subjetivas, possuidor é aquele que tem relação material com a coisa e, sobre ela, sentimento de dono; enquanto que, para as teorias objetivas, possuidor é aquele que tem relação de fato com a coisa, dando-lhe destinação, porém prescindindo do sentimento de dono.
No início do século passado, surgiram novas teorias que deram ênfase ao caráter econômico e à função social da posse, denominadas de sociológicas (GONÇALVES, 2013). Elas visualizam a posse como um fenômeno social que merece estudo não só no campo jurídico, mas também sob os aspectos sociológicos. (GABRIELA QUINHONES SOUZA, 2010). Em relação a essas teorias, temos o conceito de posse, na visão de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010):
Em outro giro, as teorias sociológicas da posse procuram demonstrar que a posse não é um apêndice da propriedade, ou a sua mera aparência e sombra. Muito pelo contrário, elas reinterpretam a posse de acordo com os valores sociais nela impregnados, como um poder fático de ingerência socioeconômica sobre determinado bem da vida, mediante a utilização concreta da coisa. A posse deve ser considerada como fenômeno de relevante densidade social, com autonomia em relação à propriedade e aos direitos reais. Devemos descobrir na própria posse as razões para o seu reconhecimento.
Para Júlio Silva Moreira (apud GABRIELA QUINHONES SOUZA, 2010), é essencial compreender a posse dentro do contexto das relações sociais, pois é preciso quebrar com a concepção ultrapassada da autonomia absoluta da vontade individual preconizada nas bases do Direito Privado. Numa sociedade repleta de enormes disparidades entre as condições materiais de sobrevivência dos indivíduos, é impossível falar em autonomia da vontade individual, pois da relação existente entre indivíduo e coisa há reflexos para os outros. Para o autor, a posse de um indivíduo só é legítima se não constituir obstáculo ao desenvolvimento econômico e social da coletividade.

É sob a égide dessa nova configuração da posse, como um instituto de caráter jurídico, econômico e social, aliada à nova concepção do direito de propriedade - que deve também exercer uma função social, como prescreve a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5°, inciso XXIII, complementando as regras sobre política urbana, em relação à usucapião urbana e rural (CF, arts. 183 e 191) -, que se observa a concepção e a exigência da função social da posse, não obstante o ordenamento civil brasileiro ter adotado as teorias objetivas, considerando possuidor aquele que tem relação de fato com a coisa, ou seja, o exercício, pleno ou não, de alguns dos poderes da propriedade.

2. Os fundamentos da função social da posse   
      
Como foi mencionado, a função social da posse não recebeu positivação expressa no Código Civil, nem na Constituição Federal. O mesmo não ocorreu com a função social da propriedade, que está expressa no art. 1228, parágrafo 1º, do Código Civil, como citado anteriormente. Entretanto, a ausência de regramento expresso em nada impede a fundamentação da posse, ou seja, entender o porquê de sua existência, e a filtragem constitucional sobre esse instituto. (FARIAS; ROSENVALD, 2010).
Segundo entendimento de Adriano Stanley Souza (2008), o fundamento de existência para o exercício de qualquer direito deve passar, necessariamente, pelo equilíbrio do bem estar social, sendo este o fundamento basilar do princípio da função social. Em relação ao instituto da posse, o seu exercício, ainda que desprovido do direito de propriedade, pode trazer inúmeros benefícios ao corpo social. Daí surge a função social da posse.
Para Gabriela Quinhones Souza (2010), por meio da função social da posse, são garantidos direitos fundamentais e outros direitos constitucionais, como o direito à moradia e ao trabalho, corolários do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal, o qual é o axioma máximo da Carta Magna. Como aduz Guilherme de Pena Moraes (2008; apud GABRIELA QUINHONES SOUZA, 2010), os direitos sociais, como o de moradia e do trabalho, são próprios do homem social, uma vez que dizem respeito a um complexo de relações sociais, econômicas e culturais que o indivíduo desenvolve para a realização de sua vida em todas as suas potencialidades. Dessa forma, tais direitos, por exemplo, fomentam o principal objetivo da Constituição Federal, que é a Dignidade da Pessoa Humana, pois esta representa uma proteção ao homem como ser humano, em que sua integridade física e psíquica, bem como suas ações e comportamentos, devem ser respeitados. Portanto, garantir ao ser humano a proteção a tais direitos, em razão da existência da função social da posse, é uma forma de fomento à dignidade da pessoa humana, importante para a sua vivência e integração na sociedade como cidadão que todos merecem ser.
Na visão de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010), a função social da posse é ainda uma abordagem diferenciada da função social da propriedade, uma vez que nesta “[...] não apenas se sanciona a conduta ilegítima de um proprietário que não é solidário perante a coletividade, mas se estimula o direito à moradia como direito fundamental de índole existencial, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana”, podendo-se inferir dela também a existência da função social da posse.
Portanto, percebe-se que a função social da posse tem como principal fundamento de existência o fato de ser uma forma de efetivação da dignidade da pessoa humana, positivada na Carta Magna, e um meio de garantia de direitos constitucionais, buscando o equilíbrio do bem estar social.

3. O conteúdo e o alcance da função social da posse

O instituto da posse, como percebido, é encarado como um fato social, e, segundo Ana Rita Vieira de Albuquerque (2002, apud FARIAS; ROSENVALD, 2010), é comprometido com os fundamentos e objetivos do Estado Democrático de Direito e a efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana.
Com a constitucionalização do Direito Civil, o qual passou a ser fortemente interpretado em consonância com os ditames da Constituição Federal, seguindo, principalmente, os fundamentos estampados em seu artigo 1°, tem-se destaque para o referido princípio da dignidade da pessoa humana. Na visão de Adriano Stanley Rocha Souza (2008), esse princípio implica em ter como centro de proteção do Estado o indivíduo, considerado como parte de um corpo social, a coletividade, devendo-se proteger o indivíduo para, por meio dele, proteger a coletividade. A função social da posse reflete essa preocupação com o indivíduo, mas também com a sociedade, para isso ela infere que seja dada destinação socioeconômica a um bem, satisfazendo ele necessidades individuais e coletivas.
Como foi dito anteriormente, entende-se que a função social da posse é uma abordagem diferenciada da função social da propriedade, portanto ambas possuem ideias semelhantes. Em relação à propriedade, e sendo a sua função social um fundamento para a função social da posse, ela deve ser protegida, mas não de maneira absoluta e cega, e sim se levando em consideração a função social que exerce frente à sua comunidade. Para o referido autor:
 A lei não protege aquela propriedade que não exerce a sua função social, ao passo que, para proteger esta mesma função social, a lei confere a mais ampla proteção ao possuidor que se utiliza da coisa de maneira adequada, contribuindo, assim, para a mantença do bem estar social. Em outras palavras, a função social da propriedade pode se constituir no fundamento jurídico para se perder a propriedade improdutiva. Por outro lado, esse mesmo princípio também pode se constituir no fundamento jurídico para se manter a posse do bem nas mãos daquele que não seja proprietário, se for este quem dá produtividade à coisa.

Infere-se, portanto, que a função social da posse impõe que a posse seja realizada de maneira adequada, sendo os poderes da propriedade relativos à essa posse efetivados de forma a atender uma destinação socioeconômica, dando-se produtividade à coisa e contribuindo para a sociedade. O possuidor deve dar uma destinação útil àquilo que possui, assumindo responsabilidades perante a coletividade. A função social da posse pode assim ser vista como uma limitação ao direito de posse, assim como ocorre na propriedade, mas em prol da utilidade e dos benefícios que a posse deve proporcionar à sociedade.
A função social da posse visa, portanto, tornar a posse um instrumento de edificação da cidadania e das necessidades básicas do ser humano, sendo possível, assim como um proprietário perder a propriedade da coisa improdutiva, um possuidor que a má utiliza perder a sua posse, ou um possuidor que lhe dar destinação socioeconômica ganhar a propriedade do proprietário “ruim”.

4. Um entendimento jurisprudencial sobre a função social da posse

Com o fim de se visualizar um pouco, na realidade prática, a relevância e a aplicação da função social da posse, tomou-se como exemplo o seguinte julgado a respeito da função social da posse (Apelação Cível n° 70008877755, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator Vasco Della Giustina, Julgado em 18/08/2004):
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E 
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DEMOLITÓRIA. CASA, EM FAVELA, CONSTRUÍDA JUNTO À VIA FÉRREA. IRREGULARIDADE. INEXISTÊNCIA DE PROJETO E ALVARÁ DE EDIFICAÇÃO. APELAÇÃO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Necessidade de se analisar não apenas o aspecto técnico-jurídico da questão, como, também, seu aspecto sócio-econômico. 2. Para ser possível a demolição, tem o Município que assegurar à apelada outra habitação que garanta sua dignidade como pessoa humana. APELAÇÃO PROVIDA, VOTO VENCIDO. [...]
Pode-se observar que tal decisão deixa clara a preocupação judicial frente às relações possessórias, não mais apenas sob o ponto de vista jurídico, mas também sob o aspecto social, uma vez que a função social da posse enaltece o instituto da dignidade da pessoa humana, viabiliza o Estado Democrático de Direito e atenua as necessidades essenciais da sociedade atual. A função social da posse é estabelecida pela necessidade social, pela necessidade de um local para morar ou para trabalhar, para as necessidades mínimas que pressupõem o ser humano como digno.

5. Função social da posse no Direito comparado

Este assunto não fica restrito somente ao Brasil, o Direito angolano também trata da função social da posse. Porém, do mesmo modo que o ordenamento brasileiro, o ordenamento angolano não possui expressa previsão legal que trate do referido assunto.
Fazendo uma análise dos direitos protegidos pelo país supracitado encontra-se a proteção à dignidade humana prevista no artigo 20º da Constituição de Angola; o item I do artigo 24º diz que: “todos os cidadãos tem direito de viver em um meio ambiente sadio e não poluído”; o artigo 44º protege a inviolabilidade do domicílio; e o artigo 50º diz que compete ao Estado garantir que os cidadãos possam gozar efetivamente dos seus direitos e cumprir integralmente seus deveres. Juntando as ideias dos três artigos, tem-se a ideia de que ai está implícito o direito à moradia, uma vez que se tem direito a viver em um ambiente sadio, com proteção a inviolabilidade deste domicilio e garantidos a efetivação dos seus direitos e deveres.
Sendo a moradia implicitamente protegida, entende-se ser protegida também a posse, já que, nos dizeres de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010):
A posse é uma extensão dos bens da personalidade. A moradia é um dos bens que integram a situação existencial de qualquer pessoa. O papel da função social em relação à moradia é o de conceder a um espaço de vida e liberdade a todo ser humano independente da questão da propriedade, pois esta se prende à patrimonialidade e à titularidade.
Portanto, pode-se concluir que a Angola, assim como o Brasil, trata da função social da posse com base nos princípios e direitos fundamentais, com base principalmente no direito à moradia e no direito à dignidade humana.

CONCLUSÃO
Diante do exposto pode-se perceber, em primeiro lugar, a necessidade de estarmos sempre atentos ao instituto da posse e à sua função social.
A grande interrelação dos direitos fundamentais com o funcionalismo social da posse a torna ainda mais imprescindível para a busca de um Direito justo, democrático e atual, já que esses direitos são constantemente invocados, não só no nosso País.
Compreende-se, então, que sempre se deve analisar a posse de maneira ampla, observar as contribuições e/ou prejuízos que podem ser causados a coletividade, sem se concentrar apenas nas relações diretas e individuais deste instituto tão presente no cotidiano jurídico para, assim, ser assegurado da melhor maneira possível o equilíbrio social, econômico e jurídico das relações atuais.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Código Civil (1965). Vade Mecum. São Paulo: Saraiva, 2013.
BRASIL. Constituição Federal (1988). Vade Mecum. São Paulo: Saraiva, 2013.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos das Coisas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: Direito das coisas. v.5. São Paulo: Saraiva, 2013.
HOULT, Thomas Ford. Dicionário de Sociologia Moderna. 1969.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n° 70008877755, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator Vasco Della Giustina, Julgado em 18/08/2004. Disponível em: <www.tj.rs.gov.br>. Acesso em: 10/03/13.
SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Direito comparado Brasil-Angola. Função social da propriedade e da posse. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1446, 17 jun. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/10024>. Acesso em: 15/03/13.
SOUZA, Adriano Stanley. Da função social da posse. Revista jurídica on line, Itabira, v.5, n.1. 2008. Disponível em: <http://www.funcesi.br/Default.aspx?tabid=962>. Acesso em: 08/03/13.

ATIVIDADES NOTARIAIS E DE REGISTRO DE IMÓVEIS:  SERVIÇO  PÚBLICO OU PARTICULAR? –  UMA ANÁLISE DO ART 236  DA  CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

Vanessa Lima da Silva Souza
Monique Mendes de Melo



1. INTRODUÇÃO

           O presente artigo tem como finalidade realizar uma analise clara e objetiva  da atividade notarial e registral sob a ótica do artigo 236 da Constituição Federal , pois em decorrência  das características históricas do serviço notarial brasileiro, esta   atividade ainda gera muitas dúvidas em relação  a sua natureza jurídica e sua atribuição funcional. Afinal os notários  são ou não funcionário público? Qual a natureza jurídica do serviço notarial e registral?

          Para podermos entender melhor os motivos desses questionamentos é necessário conhecer um pouco a história do serviço notarial e registral  na sua  origem ,principalmente no âmbito das terras brasileiras. Depois abordaremos o referido assunto sob o contexto da nossa Carta Maior, enfatizando a importância que o texto Constitucional proporcionou a regulamentação da atividade notarial em nosso país.

          Por ultimo, abortaremos os aspectos relacionado a natureza jurídica da atividade notarial e registral ,  com o objetivo de  conhecer melhor o exercício de sua função como delegação do poder público a um ente privado.

2.BREVE HISTÓRICO  

2.1 Sua Antecedência

           A atividade notarial  remota de civilizações antigas e surgiu como consequência da necessidade social de estabelece uma maior segurança e estabilidade as relações jurídicas,   possibilitando assim, a sua perpetuação no tempo. Seu precursor mais longínquo encontra-se na figura dos escribas que se caracterizavam por serem funcionários do qual gozavam de certos privilégios e tinham como função  redigir as normas e os negócios jurídicos dos povos antigos  como o Egípcio e o Hebreu.  Destaca-se que  essa função era essencialmente redatora.

           Foi na civilização romana, principalmente com o advento do Corpus Juris Civilis de Justiniano I, que a atividade notarial atingiu maior semelhança com aquelas exercidas pelo notário de hoje. Nesta época surgiram diversos tipos de oficiais deste instituto, os quais destacam-se os notarii, os argentarii, os tabularii, e os tabelliones[1].

           Os notarii  eram aqueles que escreviam,  utilizando-se de notas e valendo-se de iniciais, símbolos ou abreviaturas , com o intuito de captar com maior rapidez a exposição verbal que estava sendo realizado,entretanto, esta função não era revestidos de caráter público . Já os  argentarii, consistiam naqueles indivíduos que conseguiam dinheiro por empréstimo para particulares, elaborando o contrato de mútuo e registrando em livro próprio o nome e cognome do devedor.[2]Os tabularii atuavam como empregado fiscal encarregado de formular as listas de impostos, registrar informações como nascimento, casamento,óbito etc. Além de inventariar as coisas de propriedade privada e pública,  conservando e guardando todas as informações.[3] Mas, quem verdadeiramente representou  com mais fidelidade os antecessores do notário moderno foram os tabelliones, pois eles exerciam atividades que formalizavam os negócios jurídicos particulares e testamentos, assim como atuavam como redator e assessor jurídico.

           Outro marco determinante na história da atividade notarial foi a Escola de Bolonha  considerada por diversos doutrinadores como sendo a primeira escola  notarial, cuja contribuição dos glosadores foi de grande importância para a fixação científica das bases institucionais do notariado moderno.[4]

2.2 No Brasil

           O primeiro a figurar como notário na história brasileira, foi Pero Vaz de Caminha ao narrar e documentar os fatos oficiais sobre a descoberta e posse  das novas terras à coroa Portuguesa.É, então,  sob a influência dessa escola, considerada na época ultrapassada e eivada de defeitos, que o notariado brasileiro se fecunda.

           Durante o período de colonização e de império o direito brasileiro foi simplesmente uma reprodução ou transcrição do direito português, consequentemente a atividade notarial aqui praticado era carente de regulamentação e identidade própria. A investidura do cargo de tabelião de notas ocorria por meio de nomeação real o qual se utilizava de critérios pouco confiáveis como a doação, ou mesmo compra e venda, além disto, este cargo era investido de um direito vitalício e hereditário, o que comprometia o bom exercício da função.

           Apesar de terem ocorridas algumas tentativas de organização e regulamentação do serviço notarial no Brasil como, por exemplo, a lei editada em 1827 regulando o provimento dos ofícios da Justiça e Fazenda; a  lei 601 de 1850  conhecido como Registro do Vigário  o qual,  discriminou os bens de domínio público dos bens particulares e  que possuíam apenas efeitos meramente declaratório, a instituição notarial em nossa terra, foi durante um longo tempo  marcado por um desprovimento jurídico, pelo descaso e por um engessamento imposta pela subserviência a coroa portuguesa.

          Em  1946  a  Constituição Federal Brasileira  concedeu a condição de vitaliciedade aos titulares dos Serviços Notariais e Registrais, fortalecendo ainda mais a concepção de  funcionário público atribuído a classe notarial. Essa situação provocou uma ineficiência no avanço desta atividade, pois diminuiu a sua autonomia funcional e prejudicou a prestação do serviço notarial. Somente com o advento da Constituição de 1988 foi possível esclarecer e modificar esta concepção, sendo este o nosso próximo objeto de estudo.

3. OS SERVIÇOS NOTARIAIS  E DE REGISTRO DIANTE A CONSTITUIÇÃO DE 1988

           A Constituição de 1988 institui profundas mudanças na atividade notarial brasileira, fixando-lhe os princípios  fundamentais e a previsão de diretrizes básicas , o que possibilitou  a tão almejada lei orgânica do notariado.[5]  Entretanto, a referida lei somente foi sancionada em novembro de 1994  , após um longo processo de elaboração, iniciado no plano político institucional [6].A Lei 8.935/94 regulamentou, enfim, o art.236 da Constituição Federal.

            Segundo expressa disposição do art.236 da Constituição Federal “Os serviços notariais são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.”, portanto, o legislador brasileiro  instituiu o regime exclusivamente  privado para a atividade notarial, determinando desta forma, o rompimento com as regras anteriores  que atribuíam aos notários e registradores o tratamento de funcionários públicos.

            Apesar dos notários e registradores exercerem uma atividade estatal, dotada de fé pública eles não são titulares de cargo público, visto que prestam serviço ao Estado sem que haja nenhuma relação de subordinação ou hierarquia, ou seja, não existe vinculo  empregatício.  O que de fato existe é uma fiscalização por parte do Estado em relação à eficiência do serviço delegado, sendo tal atribuição de competência do Poder Judiciário, por expressa disposição constitucional.  

            O § 3º do art. 236 da CF/88 estabelece a imperiosidade do “ingresso nas atividades notariais por concurso público de provas e títulos não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou remoção, por mais de seis meses”. Diante este  dispositivo podemos perceber uma conotação mais profissional e qualificada que foi atribuído ao serviço notarial  e registral em nossa Carta Magna,  revertendo  a  antiga imagem de apadrinhamento e ineficiência cultivada durante longos anos. Entretanto, também podemos concluir que o referido dispositivo  evidencia o princípio da continuidade do serviço publico na atividade notarial, o que por sua vez, gera dúvidas sobre  a sua natureza jurídica.

4. A  NATUREZA JURÍDICA DOS SERVIÇOS NOTARIAS : PÚBLICO OU PRIVADO.

          A natureza jurídica dos serviços notariais e de registro é constantemente alvo de muitas polêmicas visto a sua peculiar situação como agente publico, ou  como define alguns doutrinadores, agentes particulares colaboradores do Poder Público.

         Podemos analisar a natureza jurídica dos serviços notariais e registrais sob dois aspectos, o primeiro refere-se ao aspecto subjetivo ou formal de que a natureza jurídica da atividade notarial e registral é, sem dúvida privada, pois conforme expressa disposição do art. 236 da Constituição Federal “os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público”. Não restando dúvida sobre o fato de que, no caso especifico da atividade notarial o Estado delega, ou seja, transmite poderes e atribuições a outro com necessária previsão legal, sem, contudo torna-lo servidor público.

             O segundo aspecto refere-se ao caráter objetivo ou material da natureza jurídica do serviço notarial e registral  que se perfaz sob a égide  do art. 3º da Lei 8.935/94 :“Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro”. Deste modo , entende-se que a atividade notarial exprime função de natureza pública, além de ter como diretrizes os princípios elencados no art. 37 da Constituição (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência), tal qual qualquer outra atividade exercida na esfera do Poder Público.

            A função notarial vincula-se a um ato administrativo do Poder Público tão somente por investidura da função ou nos atos da atividade notarial, possuindo autonomia própria para exercer a função que lhe foi delegada, desde que observe os requisitos legais previstos para o seu desempenho.Portanto, o notário é considerado um colaborador do poder público, de caráter privado, detentor de autonomia própria.[7]

5. CONCLUSÃO

             Durante longos anos a atividade notarial brasileira foi renegada a um plano secundário no direito pátrio, o notário era considerado funcionário público sendo muitos, destituído de capacidade para o exercício das funções que lhe  eram atribuídos,pois o ingresso no serviço notarial na maioria das vezes ocorria por motivos de apadrinhamento.

              Somente com a promulgação da Constituição de 1988 e a edição da Lei 8.935/94 , a atividade notarial e registral brasileira  foi levada a um patamar de maior notoriedade no nosso ordenamento jurídico. O art. 236 da CF/88 determinou a privatização dos serviços notariais e registrais, mediante um sistema de delegação, entretanto, este fato não torna o profissional  notarial  um servidor público.

             Conclui-se, então, que a natureza da atividade notarial e de registro reveste-se de caráter dúplice e sua compreensão é de grande importância para o entendimento da prestação desse serviço em nossa sociedade. O notário brasileiro é um  agente público e não um funcionário público, ou seja, sua função é dotado de fé pública  mas, seu exercício  ocorre sob a esfera particular.                 

[1] BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do Direito Notarial. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. P.29
[2] BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do Direito Notarial. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. P.29
[3] FOLLMER, Juliana. A Atividade Notarial e Registral como Delegação do Poder Público. Porto Alegre: Norton Editor, 2004. P.31
[4] FOLLMER, Juliana. A Atividade Notarial e Registral como Delegação do Poder Público. Porto Alegre: Norton Editor, 2004. P.35
[5] BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do Direito Notarial. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. P.79
[6] CENEVIVA, Walter. Lei dos Notários e Registradores Comentada (Lei n. 8.935/94), 4ª edição, ver. ampliada e atualizada, São Paulo/SP: editora Saraiva, 2002.
[7] FOLLMER, Juliana. A Atividade Notarial e Registral como Delegação do Poder Público. Porto Alegre: Norton Editor, 2004. P.84

quarta-feira, 24 de abril de 2013

BREVE ESTUDO ACERCA DA EVOLUÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE SOB PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL


Cibele Alexandre Uchoa*

 
RESUMO
O presente estudo tem como intuito expor, ainda que de forma perfunctória, a evolução da noção de propriedade em nosso ordenamento jurídico, buscando, inicialmente, dar extensão geral como forma de sustentáculo às mudanças nos textos constitucionais brasileiros. Dessa forma, apresentam-se as principais mudanças ocorridas em cada período histórico até que se chegue às conceituações do texto constitucional hodiernamente vigente. Busca-se aqui analisar a propriedade, amplamente estudada com enfoque civilista, sob a perspectiva histórico-constitucional, abordando, por derradeiro, o caráter funcional.
PALAVRAS-CHAVE: PROPRIEDADE; GARANTIA CONSTITUCIONAL; DIREITO FUNDAMENTAL; INTERESSE COLETIVO; FUNÇÃO SOCIAL.
 
INTRÓITO
            A concepção que foi dada à propriedade privada evoluiu com o passar do tempo, transmutando-se de uma feição absoluta do interesse privado sobre a coisa para uma prevalência do interesse coletivo, entendido como o interesse de fazer com que a propriedade cumpra sua função social. Essa evolução e transformação ocorridas no conceito de propriedade privada impactaram sobre o modo com que o Estado se relaciona com esse direito, assim como sobre a relação do proprietário com a coisa.
            As principais transformações ocorridas no direito de propriedade advêm, mormente, do trânsito do Estado Liberal ao Estado Social, caracterizado esse tempo histórico decorrido pela transição entre o caráter absoluto e individualista da propriedade, que se postergou até meados do século XVIII e marcou o período do absolutismo europeu; e entre o caráter mais coletivo e abrangente da propriedade, ou seja, a propensão da propriedade quando não dotada de uma função social, não mais estando, portanto, sob o direito irrestrito e ilimitado de seu proprietário, sendo esta concepção uníssona às concepções igualitárias.
 
DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO SOCIAL: PRINCIPAIS MUDANÇAS OCORRIDAS NO CARÁTER ABSOLUTO DA PROPRIEDADE
 
            O ideal de liberdade se perfilou de forma majorada após a Revolução Francesa, os direitos fundamentais ganharam espaço à mesma medida que os privilégios da nobreza eram diminuídos do contexto político social. Não obstante, mesmo no Estado Liberal o caráter absoluto da propriedade foi conservado, afinal era o que traduzia o ideal de liberdade, fundado nas conhecidas bases individualistas.
 
            Apesar de a Revolução Francesa firmar a famosa “liberte, égalité, fraternité”, o que muito se confirmava era o ideal de liberdade, instituído para garantir ainda mais o individualismo e a conservação da propriedade. Voltaram-se, contudo, as atenções a interesses da coletividade, interesses igualitários, voltados também à realização da justiça. Dessa maneira os ideais de liberdade se tornaram insuficientes.
 
            A passagem do Estado Liberal ao Estado Social se deu com as garantias fundamentais de segunda geração (BONAVIDES, 2012, p. 565-566). É nesse contexto que a natureza absoluta da propriedade enfraquece, ocasionando sua relativização.
 
            No Estado Social “os direitos individuais não devem mais ser entendidos como pertencentes ao indivíduo em seu exclusivo interesse, mas como instrumento para a construção de algo coletivo” (BERCOVIVI, 2005, p. 142-143). O conceito de propriedade evoluiu ao status de direito fundamental, com o interesse coletivo tutelado pela função social, o que deu azo a inúmeras contraversões doutrinárias, dentre estas, a consideração, por alguns autores, da função social como fator limitante à propriedade.
 
            As Constituições brasileiras de 1824 e de 1891 apresentavam o direito de propriedade ainda com o caráter absoluto, não assegurando o direito de propriedade pleno somente nos casos de desapropriação.
 
            A mudança introduzida pela Constituição de 1934, a garantia do poder de propriedade não ser exercido contra o interesse social ou coletivo, foi fruto de três acontecimentos históricos ocorridos na segunda metade do século XX, iniciando-se com o agrupamento dos direitos sociais do homem em consonância com a participação social, pela Constituição mexicana (FIGUEIREDO, 2010, p.86-87). Em sequência, a Revolução Russa de 1917 deu destaque às ideias de Marx, Engels e Lenin, com os direitos econômicos e sociais. O último acontecimento foi a introdução do princípio da função social da propriedade no texto da Constituição alemã de Weimer de 1919.  A Constituição de 1946 foi o primeiro texto constitucional brasileiro a adotar o aspecto funcional da propriedade, seu art. 147 dispunha da seguinte maneira: “O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade com igual oportunidade para todos.” Na Constituição de 1967, o art. 167 dispõe da mesma maneira, estabelecendo que “a ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] III- função social da propriedade.”
 
            Na Constituição de 1988 à propriedade é atribuída a condição de garantia e direito fundamental. O direito de propriedade se tornou inviolável, unindo a concepção da garantia à propriedade ao atendimento de sua função social, dessa maneira está inserida no título dedicado aos direitos e garantias fundamentais, elencado no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos, traduzindo significativamente a dimensão constitucional garantística da propriedade.
 
            Da seguinte maneira disciplina a Constituição de 1988 acerca da propriedade, harmonizando os fundamentos e os objetivos do Estado Democrático de Direito:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
 
            Em sentido explicativo, o ministro Celso de Mello (ADI 2.213-MC, em 04/04/2002, Plenário, DJ de 23-4-04) expôs de forma bastante didática:
O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na própria Constituição da República. O acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente constituem elementos de realização da função social da propriedade.  
   
CONSIDERAÇÕES FINAIS
 
            Podemos chegar à ilação, depois de finalizado o breve estudo, de que a ideia liberalista enquadrava a propriedade de forma voltada a atender somente as necessidades patrimoniais, excluindo qualquer característica que pudesse vir a auxiliar nas demais necessidades humanas, podendo estas ser exemplificadas pela geração de trabalhos ou produção de alimentos.
 
            Com o advento do Estado Social e a dotação da propriedade de uma função, devendo esta ser observada, o ideal de igualdade pode, em teoria, ser atingido de forma mais completa, sendo de fundamental importância o atendimento dessa função social para a realização dessa igualdade entre os homens, uma vez que garantidora da boa utilização e destinação da propriedade.
 
            Destarte, constatou-se que não há limitação da propriedade ao se exigir o cumprimento se sua função social, mas uma funcionalização para seu melhor aproveitamento, como bem explicitado nas passagens anteriores.
 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br> Acesso em: 13 de mar. 2013.
________. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br> Acesso em: 13 de mar. 2013.
________. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de setembro de 1946). Disponível em: < http://www.planalto.gov.br> Acesso em: 13 de mar. 2013.
________. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.213-MC. Brasília, DF, 23 de abril de 2004. Disponível em: < http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 10 de mar. 2013.
FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. A propriedade no direito ambiental. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.


* Graduanda em Direito pela Universidade de Fortaleza; e-mail: c.alexandreuchoa@gmail.com